LEMBRANÇAS
Tarde chuvosa. 13 de agosto de 2017. Ao dirigir-me à padaria, meu olhar fixou-se nos movimentos das águas que corriam próximo ao meio fio da calçada, os quais pareciam traçar uma história. Havia altivez, coragem, força e beleza.
O momento permitiu-me extravasar pensamentos, isto é, abrir as comportas que estão armazenadas na memória. Recordações, saudades e lágrimas uniram-se na construção de uma época gostosa de amizade, de respeito e de encontros. Inúmeros foram os anos em que reprimi emoções, acreditando estar sendo forte e corajosa; todavia, hoje, sei que tal atitude representava medo do amanhã e receio de cometer erros dos quais poderia vir a me arrepender.
A magia das águas, que ocupava a rua, levou-me a um passado longínquo e, em consequência, a reviver alguns momentos da infância e da adolescência relacionados a simpatias, superstições, sortilégios e adivinhações ditas por familiares. Minha avó, tias e mãe, quando chovia, corriam para cobrir os espelhos com panos brancos; acreditavam estar protegidas de raios.
As lembranças são muitas; entretanto, uma delas foi geradora de intensa satisfação e ternura. Tinha cerca de oito para nove anos e estava cheia de verrugas nas mãos e nos pés. Uma vizinha, ao visitar vovó, afirmou que isso ocorrera porque eu havia apontado ou contado estrelas. Ela conhecia uma benzedeira que fazia uma simpatia e todas sumiriam em menos de dez dias. Combinado, numa sexta-feira, apareceu Dona Leocádia acompanhada de Dona Preta. Essa trazia um saquinho branco, amarrado por uma fita azul, com sete ossinhos dentro. Segundo essa senhora, para fazer as verrugas desaparecerem, passaria sobre elas os ossinhos, sete vezes e depois os jogaria para trás sem olhar onde eles cairiam; ritual que fora repetido em três sextas-feiras. Numa manhã, ao acordar, vovô, surpreso disse:
– Elas sumiram!
Olhei as mãos e os pés, nenhum vestígio das verrugas. Feliz, sai gritando.
– Gente, Dona Preta é milagrosa!
Meus primos custaram para entender o motivo da minha alegria. O certo é que, a partir desse dia, passaram a cumprimentar a nova amiga da família com respeito e, porque não dizer, um pouco de medo. Viam-na como uma espécie de bruxa.
Numas férias de julho, uma das irmãs de papai foi visitar-nos. No segundo dia, Patrícia, sua filha, amanheceu com tosse comprida, seca, forte e persistente. Lá foi meu avô buscar Dona Preta para benzer a menina. Ela, assim que chegou, falou:
– Cumadre, ela está com coqueluche. Essa, eu tiro de letra. É só encharcar um pedaço de pão com a saliva da menininha e, depois, dar para um cão ou um gato comer, que a doença transfere-se para o animal.
Entrei em pânico. Adoro animais. Não queria ver a gata Catarina nem a cadelinha Bolinha doentes. Corri para o pátio e as prendi no galpão.
Feita a simpatia, jogaram o pão no terreiro, pão esse que, em segundos, foi devorado pelas galinhas; carne que nunca mais comi. Não me recordo se a prima melhorou. Anos depois, a dita simpatia foi repetida para a Paty que tinha bronquite. Catarina e Bolinha já não existiam.
Minha bisavó paterna tinha três irmãs solteironas, super-rabugentas. Tia Cecy costumava dizer que elas, quando jovens, além de terem aberto sombrinhas dentro de casa, nunca tinham conseguido pegar três fios dos seus cabelos e colocarem debaixo do véu de uma amiga que estava casando, sem que essa percebesse; por isso, ficaram para "titias".
Quando minha irmãzinha nasceu, ela soluçava muito e ria dormindo. Dona Iara recomendava que mamãe colocasse na testa da neném um fiapo de lã, de preferência vermelho e colasse com a sua saliva. Cheia de saberes dizia:
– Criança que ri dormindo está sonhando com anjinhos. Amiga, lembra-te de não deixar as fraldas no varal à luz do luar. Se esqueceres, a bebê terá cólicas. Caso isso aconteça, pega a Lise nos braços; mostra para a lua e diz: "Lua, luar, me deste esta menina e me ajuda a criar".
13 de agosto de 2017, data marcada pelas superstições. Talvez fora ela que me levou a recordar alguns das vivenciadas em minha infância.
Por um segundo, achei que a sombrinha estivesse com problemas, pois, ao passar a mão no rosto, percebi que estava umedecido, lembranças e lágrimas haviam se entrelaçado.