INSÓLITO CORAÇÃO

Ela se desperdiçava e vivia por aí entregando-se às mazelas da carne. Saía cedo, conhecia um cara e com ele virava a madrugada, deixando um rastro de sorrisos cafajestes por onde quer que passasse. A faculdade já deixara de lado e seguira carreira sem carreira alguma. Ganhava um dinheiro aqui e ali, com jogos de azar, que de azar não tinha nada. Mal acompanhada, mas, pelo menos, acompanhada. Não se via ela a sós, exceto nas vezes em que pegava o metrô para atravessar a cidade, indo encontrar-se com um “amor momentâneo”.

E cometia os mesmos crimes contra si mesma, tudo para desmoronar nas madrugadas em que não dormia. Podia ser a forma de se aliviar ou podia ser apenas curtição de sua tenra idade, mas o valor, que devia sentir que tinha, não revelava-se diante de seus olhos. Jogado ao vento, seu caráter se dissipava, não tendo a gratificante oportunidade de se revelar aos outros; se por um lado os caras sorriam-lhe um sorriso bonito, as pessoas dignas não lhe ofereciam sequer um “bom dia” ao passar.

E assim foi se afligindo, sentindo que algo estava errado e que sempre esteve. Não podia mais atravessar a cidade, nem sair cedo, sua culpa lhe prendia em casa, na cama, de frente para uma parede branca, lhe dando ar de doente. Sua família já se fora. Seus amigos desistiram. E os vizinhos se afastaram. Exceto alguém. Não podia descrevê-lo como amigo, tampouco como parente, ele era seu anjo da guarda (se por algum milagre acreditasse em anjos). E ele veio ao seu encontro numa tarde de domingo, trazendo consigo a fé de vê-la se levantar dali.

Onde estão todos aqueles homens agora? Teriam eles esquecido-a? Mas seu anjo da guarda não era só um homem, um menino, um amigo, um irmão. Ele era seu bem maior. O único que lhe fazia parar. E parou. Infelizmente não havia quem culpar, principalmente por seu irmão mais novo estar tão longe; então culpou a si mesma depois de culpar Deus e a constelação. E reconhecer o erro foi-lhe a única salvação.

Ana Souza

A C SOUZA
Enviado por A C SOUZA em 27/08/2017
Código do texto: T6096404
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