A HISTÓRIA DA BONECA

Minha neta viu uma boneca antiga no meu armário.

Tinha a cabeça meio separada do corpo. Não tinha sido ainda encontrada uma pessoa que consertasse a dita boneca e ela foi ficando assim mesmo.

Ela perguntou a origem dessa boneca, como tinha vindo parar ali, quanto tempo tinha e resolvi contar a sua história.

Era uma vez... Não, não era uma vez, foi num tempo há muitos anos atrás, nos idos 40, numa pequena e tradicional cidade mineira. A personagem principal desta história (eu mesma), uma menina de uns 12 anos, estava vivendo com uma tia materna. Sua família havia se desfeito com a partida da mãe. Ficara também sua irmã, mais velha que ela; seu pai viajava o tempo todo, praticamente não participando de sua vida.

Fazia uns cinco meses que estava ali, quando chegou o mês do aniversário das duas meninas.

Em uma manhã, chegou pelo Correio uma caixa grande, comprida, muito bem embrulhada. No sobrescrito estava seu nome e o remetente era sua mãe. A letra não era dela, mas a menina sabia de quem era, pois a conhecia muito bem.

Abriu com sofreguidão o pacote, já entrevendo o que teria dentro. Antes de a mãe partir, tinha prometido uma boneca que ela desejava há muito tempo. Uma boneca linda, de cabelos cacheados e loiros, olhos azuis, vestida com um vestidinho estampado, muito rodado. Sapatinhos e meias brancos; na cabeça, um chapéu com uma bela aba na frente. Ela dormia quando a deitavam e se a inclinavam para frente, ela dizia – mamãe -!

Abriu. Era sim, a tal boneca tão sonhada! Junto, em uma caixinha de veludo azul, estava um par de brincos de ouro, com argolas trabalhadas em desenhos gravados. Eram para sua irmã.

Entre os braços da boneca, duas cartas.

Na que levava seu nome, sua mãe dizia que cumpria a promessa e que aquela seria a sua última boneca, uma vez que no fim daquele mês faria treze anos e já era uma mocinha. Dizia que, se pudesse, tiraria dos caminhos de sua vida todas as pedras que aparecessem, para que jamais viesse a sofrer! Que conservasse a doçura, a meiguice, a bondade de seu pequeno coração! Que de longe estaria sempre orando para que fosse sempre feliz! Que na sua solidão, sempre se lembrava dela com muita saudade e amor.

Era uma carta muito bonita e cheia de afeto.

Os olhos da menina se encheram de lágrimas. Não dizia a ninguém o quanto sofria com a falta da mãe. Ninguém a havia ensinado a viver sem ela, sem aquela presença que enchia a casa toda, sem aquela gargalhada escandalosa e feliz que se esparramava pelo espaço em volta... Ninguém lhe ensinara que devia se acostumar a nunca mais sentir aquele perfume de “Maderas de Oriente”, impregnado em todas as roupas, em todos os cômodos, em toda sua vida!

Ninguém lhe dissera realmente o porquê de sua partida... De repente, se vira em outra casa, sem os seus brinquedos (eram lembranças que devia esquecer!), sozinha com suas indagações, em outra escola, em outra cidade, em outro mundo.

E agora, tinha em seus braços a tão sonhada boneca!

Na sua inocência não percebeu que a outra carta, o outro presente, tinham surtido um efeito muitíssimo diferente dos seus. Sua irmã, raivosa, imprecava contra aquele presente, dizendo que era uma afronta sua mãe ainda se comunicar com elas. A carta, feita em pedacinhos, tinha sido jogada em cima da mesa com desprezo.

E o pior aconteceu: sua irmã exigia que tudo tinha que ser devolvido. Que não precisavam daquilo. Que era até uma ofensa o destinatário ter sido escrito por outra pessoa, aquela pessoa “non grata” para a família. Em seu descontrole, exigia também que a devolução devia ser feita com a letra da menina, para que a mãe visse que não era mais bem quista por elas duas.

Houve muita relutância, muito choro, mas a pressão, as conseqüências que poderia vir com uma recusa, o medo que tinha das atitudes da irmã, fizeram com que afinal concordasse.

E, com o coraçãozinho doendo, as lágrimas descendo pelo rosto, a boneca, a caixinha com os brincos e a carta da irmã foram postos dentro da caixa grande e, por fora, com sua letra bonita, que imitava a da mãe, ela escreveu o endereço para a remessa da devolução.

E a outra carta? Bem, disfarçadamente, a carta da menina tinha sido escondida no bolsinho da saia rodada e depois foi posta entre seus guardados na gaveta de roupas.

A boneca foi embora...

Muitos e muitos anos depois, já casada, senhora de si, dona de seu nariz, essa menina foi visitar a mãe. Agora já ninguém poderia impedir seus atos.

Conversando com a velha senhora, ela perguntou o que ela tinha feito daquela boneca e contou também como tinha sido a devolução, o que tinha sofrido, como aquilo tinha doído demais! Contou que ainda conservava a tal carta e que de vez em quando ainda a lia para se lembrar da mãe.

A senhora foi até seu quarto e voltou com a boneca nos braços. Entregou-a e disse que a guardara com a esperança de que um dia teria a oportunidade de entregá-la a quem de direito. O par de brincos tinha sido devolvido à joalheria, pois quanto a eles, não tinha esperança alguma de conseguir um dia entregá-lo à outra filha.

A menina-senhora recebeu em seus braços, de novo, sua bela boneca e abraçou sua mãe pedindo perdão por aquele ato de outrora, quando ainda não tinha a determinação e força necessárias para brigar por ela.

Nem precisava pedir perdão, aquela mãe conhecia o caráter de sua filha.

E até hoje a boneca está guardada, bem velhinha, sapatinhos amarelados, vestido amassado, a cabecinha descolando do pescoço mas guardando ainda o amor incondicional de uma menina por sua mãe e daquela mãe por sua menina...

Minha neta disse:

- Escreve, Vovó, essa história.

Escrevi.

NOTA DE RODAPÉ. Uma moça - ANNE BEATRIZ - leu esta crônica e interpretou que dei a minha boneca à minha neta. Então, esclareço: não dei. A boneca continua guardada comigo até que eu vá embora para todo sempre.

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 15/08/2007
Reeditado em 19/12/2012
Código do texto: T609037
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