Hora de Maria
__ Desliga essa televisão agora!
Dona Graça não conseguia se acostumar com aquele aparelho barulhento e cheio de imagens que julgava coisa do demônio. Pensando assim, suas duas netas, as quais ela se viu obrigada a criar depois da separação conjugal tumultuada da filha mais nova, eram constantemente obrigadas a assistir aos programas meio às escondidas. Ao menor sinal de que a avó se aproximava, elas se apressavam em desligar, antes desta flagrar a desobediência, pois sabiam que seria bronca e ladainha de que aquilo era coisa feia, que só ensinava mal comportamento, que as mulheres andavam peladas e eram sem vergonhas etc etc. Imagine quando as meninas assistiam ao programa do Chacrinha. Dona Graça chegava na sala, via as dançarinas e tinha um ataque. Era um Deus nos acuda e esta logo declarava:
__ Desliga esse troço, isso é coisa do cão!
Pronto, o resto do dia e até da semana o assunto girava em torno do aparelho demoníaco que ela jurava, um dia, quebraria com o machado. Felizmente nunca cumpriu a promessa.
As meninas do alto de seus dez e oito anos não entendiam a razão de tanta objeção e, como toda criança, davam sempre um jeitinho de assistir algo, aproveitando os momentos em que a avó se distraia com os trabalhos domésticos ou com a máquina de costura, sua ferramenta de trabalho e ganha pão.
O final do dia era o mais complicado por que Dona Graça encerrava suas atividades lá pelas dezessete horas e se sentava à porta, na calçada, para observar o movimento vespertino da rua. Nessa hora, nem pensar em ver televisão por que vovó estava de olho. Então, as garotas aproveitavam esse momento para se reunir com as crianças da vizinhança e brincar de roda, jogar bola, rouba bandeira, entre outras brincadeiras. Era divertido e elas queriam ficar brincando até altas horas da noite. Contudo, a avó era rígida com horários e faltando dez minutos para as dezoito horas, tratava de convocar as netas para entrarem em casa.
___ Izabel...
___ Francisca....
Gritava pelo nome das meninas e decretava: Hora da Ave Maria.
Era hora de rezar o terço. Todos os dias Dona Graça rezava o terço acompanhada de suas netas. Juntas, em uníssono, recitavam o Pai-Nosso e em separado, Dona Graça recitava Ave-Maria e as meninas recitavam Santa-Maria.
Depois da reza a avó permitia que as meninas voltassem para a rua e se juntassem às demais crianças para brincarem por mais uma hora, em média.
Dona Graça recitava:
Ave Maria, cheia de graça,
o Senhor é convosco,
Bendita sois vós, entre as mulheres.
Bendito é o fruto
Do vosso ventre, Jesus.
Izabel e Francisca, recitavam a parte de Santa Maria:
Santa Maria
Mãe de Deus
Rogais por nós, pecadores,
Agora e na hora de nossa morte,
Amém.
Ocorre que Izabel e Francisca queriam que a reza acontecesse o mais rápido possível a fim de retornarem logo às brincadeiras, por isso, quando chegava a vez delas recitarem a parte da reza de Santa-Maria, o faziam em desabalada rapidez.
Assim, desejando voltar logo para as brincadeiras, faziam isso tão rápido que cortavam as palavras:
__ SantMariMãedDeusRogpnóspecdorsagrnaradnsmortmém.....
Dona Graça ficava muita brava e as fazia repetir a reza.
___ REZA DIREITO! ___ VOCÊS ESTÃO DE BRINCADEIRA? ___ISSO É PECADO! __E-n-q-u-a-n-to v-o-c-ê-s d-u-a-s n-ã-o r-e-z-a-r-e-m d-i-r-e-i-t-o, n-ã-o s-a-i-r-e-m-o-s d-a-q-u-i. Hoje vocês não vão mais brincar!
Então as meninas, de pirraça, repetiam a reza bem devagar:
S...a...n...t...a M...a...r...i...a, M...ã...e d...e D...e...u...s
R...o...g...a...i p...o...r n...ó...s p...e...c...a...d...o...r...e...s
A...g...o...r...a e n...a h...o...r...a d...e n...o...s...s...a
D...e n...o...s...s...a m...o...r...t...e, A...m...é...m.
Dona Graça ficava irritadíssima e as fazia rezar outra vez.
___ VOCÊS DUAS ME RESPEITEM! SE EU PEGAR AQUELA CORDA DA REDE... VOCÊS VÃO APRENDER A REZAR DIREITO, RAPIDINHO.
E assim, a reza do terço que poderia ser feita em meia hora se arrastava por uma hora ou mais, a depender da disposição e das peraltices e artimanhas de Izabel e Francisca provocando a sua avó. Mas, no final as crianças só estavam mesmo sendo crianças e parece que a avó sabia bem disso. Quando a reza terminava, as duas pediam a bênção, eram abençoadas e saiam em disparada a fim de aproveitar os poucos minutos que sobravam para brincar na pacata rua, da pequena cidade do interior.