Cavernas contemporâneas 1

A noite esta fria e venta muito aqui debaixo do elevado. Os carros passam em intervalos cada vez maiores e a ponte estremece. Juliana trouxe um latão, Seu José, um pouco de querosene e Reginaldo estava de passagem, carregando papelão e resolveu se juntar ao grupo. Enquanto eles dividem a garrafa de pinga e se aquecem junto ao fogo, vão contando sobre moradores de rua que morreram de frio, de doenças e por espancamento. Juliana é morena, magra de aproximadamente 45 anos e muito faladora. Calça um par de tênis rasgados no bico e os arrasta como chinelos. Seu vestido gasto e desbotado, que algum dia foi azul, esta todo sujo de terra e areia. Seu cabelo emaranhado e cheio de pontas, quando próximo ao fogo, torna sua aparência assustadora. Ela perdeu sua família e seus pertences na enchente. Seu José esta na faixa dos 50 anos, barba comprida até o peito, cabelos grisalhos. Quando ri, deixa aparecer seu único e último dente na boca. Ele veste algo parecido com uma capa e calça chinelos de dedo nos pés acinzentados pela poeira das ruas. Suas unhas cresceram e estão pretas. Ele foi traído, abandonado pela esposa e precisou ser internado por problemas mentais. Acabou fugindo do sanatório e ri, com um só dente, quando diz preferir o “tratamento das ruas”. Reginaldo parece não ter mais de 40 anos. Seu rosto é vermelho, sanguíneo e inchado. Seus cabelos são pretos lisos, emplastrados e presos por uma touca de meia feminina. Nos pés, dois sapatos de amarrar sem cadarço e sem meias. Uma bermuda clara manchada de tinta e um surrado pulôver azul. Ele é alcoólatra, foi expulso de casa e agora mora na rua. Eles dividem cigarros, comida, papelão, latinhas, o que tiverem. Dividem sua humanidade. Seu José se agacha em frente ao fogareiro enquanto Juliana abana o fogo e Reginaldo toma um gole de cachaça. Seu José dá uma tragada no cigarro de Juliana, devolve a “bituca” e comenta que a professorinha de sua cidade natal tinha dito que os primeiros homens da terra moravam nas cavernas e se assentavam em roda do fogo para se aquecerem, assim como eles costumavam fazer. Acho que, intuitivamente, ele fez uma crítica querendo dizer que o mundo é contemporâneo só para quem esta socialmente incluído nele e para os excluídos não houve e nem há evolução. Eles ainda viviam em cavernas, cavernas contemporâneas.(Walter Sasso) (Autor do livro "Dobra Púrpura" - Amazon)