A moça em primeiro plano

Sabe este quadro, meu filho? Este aqui, pendurado na sala, tão velho e encardido quanto eu? Foi presente de um velho amigo. Ele próprio o pintou, eternizando um efêmero momento da minha juventude. Eu o conservei até aqui porque tem a capacidade de manter vivo aquele passado. Gosto dele.

Gosto porque é um retrato fiel de uma paisagem que conheci em outros tempos. Gosto porque nele o sol nunca deixou de brilhar e porque aquela moça linda que aparece em primeiro plano jamais deixou de sorrir, nem seu vestido ficou démodée com o inexorável passar do tempo.

Gosto porque ainda posso ver as montanhas ao fundo sempre cobertas da conhecida vegetação do campo, praticamente intocada pela voracidade destruidora do homem e porque aquele ribeirão que atravessa aquela plantação de milho ainda continua correndo ali, caudaloso e dotado da mesma generosidade que conheci nas pescarias vespertinas da minha infância longínqua, por entre o milharal enfeitado de pendões altaneiros e espigas magnificas se embonecando de fios dourados para a festa da colheita.

Gosto porque aquela mangueira hercúlea continua a exibir seus frutos generosos e porque aquele cavalo continua a manter a elegância do seu galope pela pradaria e o seu garboso ginete ainda levanta o chapéu de um modo cortês em cumprimento à bela moça do primeiro plano.

Gosto porque o vento que faz vergar aquela esbelta palmeira nunca se descuidou da sua eterna função. E porque aquela faixa de céu azul ainda sustenta as mesmas nuvens brancas com as quais eu, pobre menino sonhador, deitado de costas na grama do jardim, brincava de encontrar estranhas figuras de animais...

Quer saber, meu filho? Este quadro aí da sala, pode descarta-lo. Está amarelado pelo efeito da fumaça do fogão a lenha e pelas muitas primaveras que assistiu daí desse seu posto. Agora é só uma nota destoante na sinfonia da modernidade, o último registro do paraíso perdido. Tudo o que ele retrata na verdade é só parte de um passado distante, que tão logo eu me vá, será esquecido para sempre.

De fato. De fato mesmo, a única coisa que restou é a moça em primeiro plano. Que já não é tão moça, nem tão bela, nem tão pura, nem tão sorridente, mas ainda consegue encher de serena consolação, os arrastados dias da minha velhice.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 17/08/2017
Reeditado em 17/08/2017
Código do texto: T6086243
Classificação de conteúdo: seguro