Alienação

ALIENAÇÃO

Todos os dias eu o vejo no mesmo lugar, na mesma posição: cabelos compridos, amarrados atrás, jaqueta azul, olhando para o infinito, perfilado, batendo continência para um exército que desfila a sua frente, que somente ele vê. Por horas a fio mantém-se, altaneiro, a frente de seu exército imaginário. Dizem que foi militar, até endoidecer. Outros, que nasceu assim. Não se sabe se tem família, ou quem o mantém. Mas todo dia, à mesma hora, chova ou faça sol, lá está ele, perfilado ante seus soldados.

Que mundo é esse que o seduz? Em sua mente alienada, o que pensa ser? Um general vitorioso? Em seu devaneio existe uma mulher, filhos? Aguarda ansiosamente o momento de, liberto das obrigações marciais, voltar para o abraço da esposa e o afago dos filhos? Em que mundo vive em sua abstração?

Talvez viva num mundo parecido com o meu. Talvez tenha uma bela casa, um carro do ano; o seu trabalho de militar seja a sua vocação e talvez, como eu, esteja pretendendo passar as férias em Arraial do Cabo, na praia, com a família.

Fico pensando o quanto a minha vida é certinha: sou advogado, ganho razoavelmente bem, tenho filhos adoráveis, meus amigos me acham um cara legal, minha esposa me admira e ama... E enquanto estou tecendo esses pensamentos, olhando para o estranho personagem, em posição de sentido, noto, com o canto do olho, .duas pessoas passarem e me olharem com um sorriso de espanto. Viro-me para elas, rapidamente, mas já se foram cochichando. Fico intrigado. Afinal estou de pé, ao lado do meu Voyage, do ano, tenho boa apresentação, então por que riram?

De repente sinto um frio correr por minha espinha e um pensamento estranho tomar conta de mim: E se eu, como o militar, estou parado em uma praça, de terno, imaginando-me advogado em audiência vitoriosa, discursando para jurados imaginários, recebendo cumprimentos de magistrados e promotores e aplaudido pela mídia? E se tudo o que penso que sou não é apenas uma alienação total da realidade? Sou mesmo advogado? Tenho uma bela casa, esposa e filhos? Estou realmente parado ao lado de um belo carro do ano?

E você que me lê, neste instante... está lendo realmente ou está imaginando essa história?

Será que você também não está em uma praça, como o militar, ou quem sabe, como o advogado?

Mas, de qualquer forma, não vale a pena tal preocupação. Afinal, nós somos o que pensamos que somos. Em assim sendo, o alienado da praça é sem dúvida um general, eu sou um advogado e você, só mesmo você poderá dizer.

Pedro Lodi
Enviado por Pedro Lodi em 16/08/2017
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