"EU ERA FELIZ E NÃO SABIA"

Era simples e sábio, craque em colocar os pontos nos is e contornar dificuldades que surgiam.

Essas danadas e corriqueiras dificuldades de família grande, de poucos recursos. Simples e despretensioso. Eu tinha certeza de que o amava e o contemplava com veneração sem palavras.

Ensinou-me bem cedo a aceitar fatos que se apresentavam sem solução e me dizia com sua voz grave: “filha, o que não tem remédio, remediado está”. Também soube me mostrar que, às vezes, o melhor é o silêncio e sempre me alertava “quem fala muito dá bom dia a cavalo e um burro calado passa por inteligente”.

Autodidata, lia muito. Jamais frequentou escolas, aprendeu a arte da leitura em um romance espanhol, que um tio trouxera da Espanha e, naquelas páginas, o tio mostrou-lhe como se juntavam as letras e se formavam as palavras e estas formavam frases. Transferiu tudo que aprendera para a Língua Portuguesa e passou a amar a leitura. Lia o que lhe caía nas mãos e, assim, não ficava alheio a assunto algum. Tinha conteúdo para qualquer tema e era de boa prosa.

Admirava boa música, tinha bom gosto musical. Ouvia por horas a fio, em época de aposentadoria, seus discos de música flamenca, os velhos discos de vinil. Ouvia rádio à noite, sentado na varanda, cigarro de palha nos dedos, encantava-se com músicas de Clara Nunes, Elis Regina, Orlando Silva, Carlos Galhardo e acompanhava os festivais da Record. Torcia por seus escolhidos e apaixonou-se por Maria Carnaval e Cinzas.

Gostava de apresentar-me novidades. Tinha eu 14 anos, pegou-me pela mão e levou-me para conhecer a nova loja que se abrira em Londrina e que tinha escada rolante, As Americanas. Segurando-me a mão, cuidava para atravessarmos a rua, como se eu não me soubesse cuidar.

Aos 23 anos, comprei meu primeiro Fusca, o Benvindo. Meu pai ficou feliz e encantado com minha proeza de já ter tirado carteira de motorista, para fazer-lhe surpresa. Chamou-me lá fora e me ensinou trocar o pneu, tirando-o e o colocando três vezes seguidas. Depois, mandou que eu repetisse a ação. Ação repetida, liberou-me," agora você já pode ir com seu automóvel para a rua. Já sabe se virar”.

Certa feita, fiquei desempregada, cheguei triste em casa. Ele me chamou e disse: “nesta casa, enquanto eu for vivo, não lhe faltará teto, comida na mesa, nada. Você tem capacidade e pode arrumar outro trabalho. Isso não é motivo para tristeza”.

Numa noite de sábado, sentados na varanda, chamou-me ao pé do rádio e me disse, preste atenção na beleza dessa canção e ouça bem o que diz o final dela. Eu ouvi e as palavras eram estas: ”Eu era feliz e não sabia”. Igual na canção de Maria, tudo virou cinzas.

Dalva Molina Mansano

Dalva Molina Mansano
Enviado por Dalva Molina Mansano em 14/08/2017
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