Peripécias juvenis
Pensando bem, há controvérsia se eu analisar o tempo vivido e o que estou vivendo. Por quê tudo era decidido com tanta rapidez se as circunstâncias não eram tão favoráveis?
Especialmente na década de 80, em uma conversa informal de final de semana um excelente feriadão em Santa Catarina poderia ser planejado sem qualquer problema. Praias ainda paradisíacas, com difícil acesso e praticamente sem possibilidade de uma boa locação. Mas isso não importava.
Eu tinha carro? Não! Dinheiro? Não! Tempo? Somente os finais de semana e feriados. Disposição? Toda! E era isso que me movia juntamente com grandes amigos que, para não cometer qualquer falha, não citarei os nomes.
Nessa época eu já morava em Porto Alegre e, se o feriadão tivesse início na quinta, na quarta à noite já rumávamos para Santo Antônio para “dar uma passadinha na casa dos nossos pais” a fim de informarmos para onde iríamos. Sim, somente “informarmos” porque na época não tínhamos celulares e nem ousávamos fazer uma reserva em qualquer hotel. Geralmente saíamos com barraca no porta malas e, na melhor das hipóteses, alugávamos, através de telefone fixo, uma pousada sem ao menos um café da manhã (o que não era problema, porque “rabo quente” não faltava na mochila). Na mesma noite seguíamos viagem, na sua grande maioria com o mesmo amigo-motorista em um Corcel II verde com um porta-malas que a cada aventura aumentava sem que percebêssemos, tendo como primeira parada a cidade de Araranguá. Lá geralmente comíamos um pastel com café preto no “Becker” para aguentarmos a viagem, que ainda levaria umas boas horas.
Certa vez uma enchente nos bloqueou naquela cidade. Na imensa fila de horas em que ficamos aguardando, após passarmos a primeira noite dormindo no carro em um Posto de Gasolina, encontramos outros amigos, cheios de energia numa Belina flamante. As horas foram passando e a água não colaborando. Surgiram então os caminhões ou mesmo carros com boa tração oferecendo-se para transportarem os turistas. Mas cobravam, e cobravam caro. Nós, sempre com o dinheiro contado, não tínhamos como fazer a travessia. Do nada surgiu um motorista de um caminhão carregado de galinhas e, após uma boa conversa, aceitou que nós, as três mulheres da viagem, adentrássemos na carroceria e os dois carros o seguissem pelo caminho aberto pela ultrapassagem. Ufa! Tudo certo! Já estávamos do outro lado para seguir o caminho tão desejado, sem ter a mínima noção de que, no dia seguinte, seríamos protagonistas de uma imagem da enchente retratada na Zero Hora.
Dormíamos na viagem? Não! Conversa não faltava e a ansiedade tirava o sono. Chegando na praia desejada – geralmente Bombinhas, nós, as mulheres (na época as meninas), auxiliávamos os homens (os meninos) a montarem a barraca e começávamos a organizar o lar que nos abrigaria por quatro dias no Camping Águas Cristalinas, o único da praia. Tudo muito mágico. Depois de tudo organizado corríamos para a praia com um estado de ânimo tão bom que parecia que recém havíamos acordado de uma noite bem dormida. Lá, em qualquer outra praia que visitássemos, sempre encontrávamos outros amigos, bem como fazíamos novos.
Os dias eram imensos, muito diferentes dos dias de hoje. Eles se agigantavam na mesma proporção do nosso desejo de aproveitar o que a vida estava nos oferecendo. Nem ousávamos pensar no que nos esperaria no retorno. Imergíamos num mundo em que nada poderia nos incomodar. Não sabíamos de nada, não líamos um jornal, não tínhamos internet, não tínhamos telefone e até hoje não sei como não nos preocupávamos se algo nos acontecesse ou mesmo acontecesse com alguém que amávamos.
Bombinhas foi por nós descoberta quando nenhum edifício ainda pairava sob ela. Água límpida, areias brancas e uma pousada simples de propriedade de um homem de nome Claudir, que servia também de Posto Telefônico. Com o tempo eu passei a marcar horários com a minha mãe e ligar para a casa da minha vó a fim de saber como ela estava. Nessa pousada fiquei várias vezes, com os mais diversos amigos e também fiz grande amizade com o proprietário, a ponto de fazer reservas antecipadas ao final de cada verão. Só existia uma Pizzaria, de nome “Come Bem” na praia e lá jantávamos sempre que o dinheiro fosse suficiente.
Tudo era simples, nós vivíamos uma vida simples, a nossa felicidade era simples. Se o ditado que diz que “o menos é mais”, nós tínhamos muito naquela época. Tínhamos amizade, respeito uns pelos outros, tolerância e muitos risos. Ah ... como ríamos de tudo.
Em um dos feriadões de Carnaval, no mesmo Camping, uma amiga levou até mesmo uma bela fantasia para fazer a folia no “Sombreiro”, um bar à beira da praia de Bombinhas. E foi o Sombreiro que abrigou tantas e tantas histórias pelas quais passamos.
Em uma das inúmeras aventuras estava conosco um casal que lá iniciou o seu namoro e atualmente já comemorou os seus 30 anos de um bonito casamento. Mesmo de início, o amor era tanto que foram apelidados de Apolo e Pureza, alusivos ao quadro de um dos programas do Chico Anysio na época.
Certa vez fizemos uma bela feijoada no Camping e de lá rumamos, cantando os sambas da Mangueira para o Sombreiro, protagonizando até mesmo o Delegado e a Mocinha(*)na beira da praia. Nessa noite, o proprietário da barraca estava, ainda não sabemos ao certo, se depressivo ou eufórido e disse: “não servirei nada!” e abriu o estabelecimento para que nos servíssemos à vontade. A noite foi longa, longa demais para a nossa estrutura tão jovial. No retorno, com muita chuva, deparamo-nos com um amigo paulista e, junto com ele e num ato de solidariedade extrema, mesmo abaixo dos trovões, o auxiliamos na desmontagem da sua pequena casa, findando o trabalho com um rasgo de saudade prematura. Nunca mais o encontramos. O cara merecia, pois havia feito uma linda amizade conosco. E depois disso, com a contínua chuva, fomos deitar ao som do Itaimbezinho. Era assim que chamávamos o valo que ladeava a nossa barraca e por quem oramos por um bom tempo.
Em outra ocasião resolvemos ir para Laguna para conhecer o famoso Carnaval de lá. Acampamos no Morro da Glória, no Camping Senhor Natureza. Vista linda para o mar; mas uma imensa distância do centro e todo o morro para escalar. Lá havia uma piscina de pedra que mais parecia uma “bica” e era lá que nos banhávamos com o forte calor durante a nossa estada sempre alegre conhecendo gente nova. Na primeira noite nos apavoramos ao perceber que o Carnaval em Laguna é praticamente curtido com máscaras e nós não tínhamos uma máscara sequer. Como não havia mais tempo de adquirí-las, resolvemos colocar os nossos casaquinhos na cabeça, deixar uns furinhos para os olhos e curtir como se fossemos mascarados. Vez ou outra nos perdíamos, mas o encontro era inevitável. A energia nos unia.
Muitas e muitas outras praias foram por nós desbravadas. Uma delas foi Garopaba. Lá já não mais íamos para Campings. Nosso salário já nos permitia um aluguel de casa, embora todo o processo fosse por telefone, ou seja, não sabíamos o que encontraríamos pela frente. Mas nada naquela época era decepcionante. Sempre dávamos um jeito. Um jeito a ponto de vermos uma das casas encher com quinze pessoas, sem que soubéssemos ao certo o número e termos que arrumar alternativas
para abrigar o povo. Resultado: todas as noites duas pessoas dormiam em um pequeno espaço próximo ao tanque – ou os pés ou as cabeças ficavam embaixo dele. As duas casas fizeram, naquele ano, que o Carnaval de Garopaba nunca mais fosse o mesmo. Em uma tarde fizemos fantasias de jornal para todos e saímos enlouquecidos pulando um dos melhores carnavais da nossa vida. As fotos (tiradas com máquinas mais do que amadoras) comprovam a criatividade, a alegria e o entrosamento de uma juventude enlouquecida, mas extremamente feliz.
Eu ficaria aqui por mais de uma noite escrevendo sobre tudo o que passamos, mas finalizarei com uma passagem que se deu em Jurerê. Em uma casa alugada lá estávamos nós dispostos a curtir o máximo. Até o banheiro nos auxiliava, pois era dividido e quem estava tomando banho podia, com a maior privacidade, prosear como quem estava no vaso. Tudo na maior normalidade. Aproveitamos muito, exceção feita a um amigo que passou todo o tempo “empuleirado” no telhado, tentando instalar uma antena para assistir a um jogo do seu time. Até hoje não lembro se logrou êxito ou não. O que eu sei é que os demais retornaram queimados de sol, com cheiro de sal, cheios de boas histórias, tendo a certeza de que aqueles dias nunca seriam esquecidos. Tanto não foram que estão aqui, resumidamente escritos.
Saudade ...
(*) Delegado – o mais famoso mestre-sala do Carnaval carioca. Pertencia à Mangueira. Mocinha – uma das suas porta-bandeira, da mesma forma agraciada pelo dom do samba.
(publicada na obra PROSA NA VARANDA 4, lançada em 25/07/2017)