Éramos nove

Minha infância foi farta: farta de família, afetos, peculiaridades, encantos e um tanto (tão) grande de histórias que merecem ser registradas. O tempo! Ah! Esse domador, de tanto correr acaba muitas vezes nos tirando registros marcantes e(,) é por essa razão(,) que inicio este relato com uma saudade gostosa. Neste momento, escrevo na mesma praia onde tudo aconteceu: Tramandaí.

Aguardo, em pequenas férias, a virada do ano e percebo que tudo mudou. As lembranças se transformaram em uma realidade muitas vezes diversa daquela que eu pensava que seria a minha realidade.

Pois bem, vamos aos fatos ... todos os anos, no mês de janeiro, a minha família e a família Conceição ocupavam a casa de praia herdada por meu avô, Salvador Jesus de Oliveira. No mês de fevereiro era a vez das famílias Sillero e Oliveira e no mês de março a farra anunciada com a Vó Rosalina e suas amigas de idade próxima. Tudo acontecia num chalé de madeira na esquina da Rua Caldas Junior, na Zona Nova. Lembro-me de minha mãe contar que o Vô Dodô (acima o Salvador) e o Tio Bebeto (Felisberto Luiz de Oliveira), foram os primeiros a adquirirem terrenos nessa zona, ainda em cima de cômoros de areia. Um construiu em uma esquina e o outro em outra mas, quando começamos a veranear em janeiro, a família Bemfica já havia adquirido o chalé do Tio Bebeto e daí pude conviver com meus amigos de infância nesse mês: A Maristela, a Carla e o Betinho.

Os preparativos para o veraneio eram grandes. Lá por outubro minha mãe já contratava a D. Neuza (famosa costureira da época) para ir para nossa casa para costurar os nossos trajinhos de verão. Tudo era mágico, embora não tivéssemos autorização para qualquer palpite. Meu pai, lá por abril, já me levava para a Tipografia Cruzeiro, de sua propriedade, para auxiliá-lo aos domingos, alegando que, ao finalizar o trabalho me pagaria um pequena quantia que deveria ser guardada para as guloseimas da praia (picolés, puxa-puxas, etc.). Nessa época, como eu ainda era pequena e não tinha qualquer habilidade para auxiliá-lo, ganhei uma caderneta de datilografia e, em cima de dela, passava as manhãs de domingo treinando com uma folha branca grudada na máquina manual (e) caída sob minhas pequenas mãos. Essa estratégia me rendeu bons frutos. Na minha vida profissional sempre fui conhecida pela exímia datilografia com todos os dedos.

E era chegado o janeiro, o nosso mês. A Fargo, cor de abóbora com duas portas, era lotada com uma comilança sem precedentes e, para completar, aguardava os Conceição chegarem de Porto Alegre para juntos – eu, a Goretti, o André e a Simone sentarmos na carroceira com os pés prá fora e seguirmos viagem, não sem antes o meu pai prender uma corda nas extremidades que servia de divisor entre nós e o asfalto, além de servir como parapeito para os nosso braços.

A RS 030 era longa e cheia de aventuras. Lá, atrás, contávamos os carros e fazíamos brincadeiras das cores dos mesmos. Tudo na maior alegria, pois 30 dias de pura diversão estavam a nos aguardar.

A casa contava com uma enorme mesa de madeira para aproximadamente 12 pessoas, ladeada por dois bancos de madeira de mesmo tamanho, 3 quartos internos, 1 cozinha e, depois de um degrau e com abertura para a rua, mais um quarto e banheiros, um com vaso e pia e o outro com o chuveiro. Um outro pequeno cômodo era usado para guardar tralhas e o tanque ficava embaixo de umas telhas, mas com todas as laterais abertas. A garagem, obviamente como na época, era afastada da casa.

Não havia sofá e na sala onde encontrava-se a mesa, havia um armário embutido ao estilo português, com moldura recortada de madeira, onde, incrivelmente, cabia toda a louça para as famílias que lá se instalavam.

Acordávamos cedo e logo iniciávamos as brincadeiras no grande gramado ao lado da casa. Não lembro de ter qualquer atividade que não fosse as brincadeiras com a minha irmã e os meus primos. Como a mais velha, eu exercia uma certa liderança, o que era sempre contestada pelo André, o único homem, que ordenava que eu enchesse o seu caminhão de madeira de areia diariamente. Inevitalmente algumas brigas aconteciam e eram contemporizadas por nossos pais com umas boas palmadas e, no dia posterior, tudo estava acertado.

A sete quadras da praia, não era todo o dia que atravessávamos os cômoros para chegarmos na praia mas, quando isso acontecia, muitas vezes no retorno éramos recebidos pela Irene, secretária da Tia Gladis que veraneava conosco, com sopa de milho. O sabor era tão característico que até hoje o recordo. A Irene era uma mulher de grande porte e costumava, já no início dos veraneios, engraçar-se por um ou outro vizinho. Os namoros eram curtidos com muita liberdade nos finais de tarde, quando ela já estava de folga.

Nos dias de chuva meu pai corria para uma peixaria e trazia peixinhos minúsculos. Colocava-nos sentados, após a chuva passar, na grande poça que se formava na rua ao lado com caniços feitos com taquara e barbante. Ele, grandão, sentava no meio da poça e amarrava sutilmente os peixinhos no barbante e a alegria se instaurava nos nossos rostos. Dia de chuva era dia de pescaria.

E assim os dias se passavam com uma alegria contagiante.

Nas sextas-feiras tudo começava a ser organizado para aguardar os patriarcas. Meu pai e o Tio Pê – o homem com o melhor coração que eu conhecí – chegavam e, como era comum antigamente, viravam paxás em meio aquele ambiente onde tudo era mágico. Cruzavam as noites jogando cartas e planejando o que almoçariam no dia seguinte. Enquanto isso, nós as crianças, já estávamos dormindo com toda a energia zerada no decorrer do dia.

Lembro-me da carrocinha de um senhor velhinho que passava todos os dias vendendo frutas e verduras e dos meninos que, após o meio dia, batiam com uma espécie de ratoeira para fazerem som e anunciarem o “puxa-puxê”. O sabor era inigualável.

E nós, que éramos nove naquela época, retornávamos no final do mês pretos de tanto sol, com gosto de sal e lembranças boas que nos fizeram tão unidos até hoje. Quem convive sabe: as famílias Rocha e Conceição são uma gostosa mistura, embora os caminhos tenham se distanciado fisicamente pelo destino e as necessidades da vida.

(publicada na obra PROSA NA VARANDA 2, lançada em 25/07/2017)

Rosalva
Enviado por Rosalva em 10/08/2017
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