Ser funcionário público

Ando perdido. Minha alma foge de mim sem que eu tome qualquer atitude. Vou da cama para o trabalho e do trabalho à cama em passos mágicos! Na verdade não tenho pés nem mãos para qualquer trabalho mais significativo ou maratona de longa distância. Sou um funcionário público - um homem comum! - como dizia um estimado amigo dos versos.

Afora o trabalho, tudo mais é consequência da nossa existência. Embora a morte me pareça apressada ainda canto para minhas filhas e escuto Elis (uma glória!), mesmo sabendo que ela nos deixou há bastante tempo.

Mas nem tudo está morto ou podre, hoje um menino sorriu para mim. Não tinha pés, não tinha mãos, não tinha comida... mas tinha talidomida. Estava lá, onde sempre esteve. Com o mesmo sorriso, com a mesma graça.

Eu, que tenho pés e as mãos, que sou funcionário público e ouço Elis, reclamo de tudo: o salário que não aumenta, o governo que promete e não cumpre, a inflação que toma conta das minhas leituras de rodapé. E assim vai, ou melhor e assim vou. Só ainda não sei pra onde...

Nesta noite sonhei que havia engolido uma semente de jaca, jaca dura e que ela havia descido para o intestino grosso como uma uva e lá, em meio a tanto excremento, resolveu germinar. Nervoso como um peba, soando como uma panela de pressão em fogo baixo. Percebi que crescia dentro de mim uma boca faminta. Rapidamente os galhos foram crescendo, crescendo para todos os lados. Quando acordei me senti como uma árvore enorme, já madura... de dar inveja a velhos jequitibás.

Hoje me chamam de vagabundo, de barnabé, de parasita e outros adjetivos não menos pejorativos. Querem tirar meus direitos a qualquer custo. Que tirem! O menino que fica na esquina da minha casa não nasceu com os braços, nem com as pernas, mas, ainda assim, sorri e acena para mim. É verdade que não nasci funcionário público, mas certamente morrerei como tal. Como disse meu amigo - sou um homem comum. É assim que me veem, os que estão do outro lado da rua.

Antigamente ser funcionário público era coisa de gente grã-fina, coisa importante, carreira das mais promissoras. Você se lembra de João Cabral de Melo Neto? Pois é... você se lembra de Zéfiro? Pois é... você se lembra de Drummond de Andrade? Pois é... será que um dia você vai lembrar de mim? Pois é...

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 15/08/2007
Reeditado em 04/10/2017
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