Aquele Olhar
Quando a vi pela primeira vez, achei o seu olhar cansado e triste. Talvez por ser quase o fim do expediente, já estivesse exausta depois de cumprir com suas inúmeras atribuições de mãe, dona de casa e profissional que toda mulher encara todos os dias. Sua imagem não encaixava naquele horário nobre. Me parecia sem graça, sem glamour.
Mesmo passando para o noticiário matinal, aquele seu olhar continuava o mesmo: triste, quase opaco. Muitas vezes as olheiras se destacavam e pouquíssimas vezes dava "Bom Dia" para o Brasil com aquele sorriso com gosto da vitória - "Kolynos!", como seus colegas faziam. Era até difícil flagrar um sorriso no rosto dela, fosse na TV ou fora dela.
Quando jovem, chegou a cursar Filosofia, mas a Economia virou a sua praia e meio de sustento. Escrever e falar de economia não parece ser o sonho ideal, nem algo muito animador num país como nosso. Cheguei a imaginar que seu olhar fosse fruto de alguma
frustração, azar no amor, jogo talvez, ou uma traição. Confesso que o olhar daquela mulher me deixava cada vez mais intrigada desde 1991 quando sua trajetória jornalística na Rede Globo começou.
Mas só em 2014, essa mulher veio a público e contou sua história que bem poucos conhecem. Até entãio, ela só havia falado no assunto em seus depoimentos à Justiça. Foi aí que comecei a entender melhor esse seu olhar que não foi sempre triste.
Anos ´70 ... Enquanto muitos se preocupavam com o mais novo lançamento de Ibrahim Sued, '20 Anos de Caviar', muitos jovens engajavam na política buscando mudar o Brasil. Maioria universitários, militantes e artistas rotulados como subersivos pelo Governo, e principalmente pelas Forças Armadas. A arte, livros e panfletos que circulam clandestinamente, manifestam a vontade da juventude ter um Brasil democrático, mais livre, sem lenço, sem documento.
O olhar de uma certa menina, que cursava seu 1° Ano de Filosofia, era tão vivo, ousado e cheio de esperança quanto de qualquer outro jovem, até 3 de dezembro de 1972, quando foi presa por ter uma história sua publicada. Não considerava o seu relato muito importante, mas sim necessário para aquele momento em que o Brasil vivia. Alguém achou a moça audaciosa demais e ela pagou caro por acreditar nessa utopia toda.
Foram três meses de terror, inferno total entre tapas, chutes, golpes que abriram a sua cabeça, seus cabelos sendo quase arrancados a cada puxão, tortura física e psicológica, o constrangimento de expor o seu corpo nu para soldados e agentes que a xingavam e batiam, e os inúmeros ataques que sofria dos cães pastores que babavam de raiva em cima dela. As horas viraram dias que só traziam agonia sem fim numa cela sem luz que dividia com uma jiboia que era o seu pesadelo constante. Só no fim de dezembro, depois de longas e incansáveis buscas por todo cidade, o seu pai finalmente a localizou.
A jovem, MIRIAM AZEVEDO DE ALMEIDA LEITÃO, de 19 anos, cujo codinome era 'Amélia', entrou no quartel com 50 kilos e grávida de um mês. Foi solta três meses depois já no quarto mês de gestação. Estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol e pesando 39 kilos.
Vivia angustiada pois sabia que o filho que carregava no ventre talvez não sobrevivesse. Se chegasse a nascer, seu bebê teria sequelas sérias.
Não sabia nada sobre o Marcelo. Na certa havia sofrido horrores como ela, mas estaria vivo? Ou teria morrido? Quão pesado seu fardo e sem seu companheiro do seu lado nessa hora.
Quem diria que aquela manhã de domingo de sol com seu companheiro, Marcelo, na praia do Canto (Vitória, ES), tomaria outro rumo que jamais havia sido imaginado por eles, nem mesmo por um escritor de histórias de terror.
Agora entendo o seu olhar, Miriam.
É o olhar de quem sonhou coisas boas um dia, e num piscar dos olhos, viu tudo, ou quase tudo, morrer.
Não é fácil recuperar aquele brilho no olhar depois de viver tudo que viveu na flor da idade.
Agora, compreendo o seu olhar.
Trecho do Depoimento de Miriam Leitão diante do Tribunal Militar (1973).
"Um dia achei que iria morrer. Entraram no meio da noite na cela do forte para onde fui levada após esses dois dias. Falaram que seria o último passeio e me levaram para um lugar escuro, no pátio do quartel, para simular um fuzilmamento. Vi minha sombra refletida na parede branca do forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos, Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: Eu sou muito nova para morrer. Quero viver".
Miriam Leitão preferiu ficar calada por muitos anos. "Nunca achei que a minha história fosse importante, não quis tornar público detalhes, outros brasileiros sofreram mais do que eu, muitos perderam a vida. Minha história ficou apenas no primeiro capítulo diante do que aconteceu com outras pessoas".
Segundo a própria jornalista, não tem ódio, nem mágoas. Nunca pediu idenização, nem quer isso. Decidiu contar sua história por que acredita que é desse ato de reconhecimento do erro que nasce a certeza de que o erro não vai ser repetido.
"Minha vingança foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país".
Até hoje, a Miriam aguarda.