VOAR

Por pouco mais de quarenta anos voei como profissão. Por todo esse tempo voei sem muito pensar sobre o assunto, e sem teorizar sobre as razões que levam o homem a desafiar a gravidade, a elevar-se no ar e sentir-se algo como um pássaro desajeitado e barulhento, invadindo o espaço franqueado a nuvens e aves. Aliás, pouquíssimos têm sido os aviadores que se aventuraram pelo caminho de registrar na literatura suas experiências e sensações lá onde a liberdade parece uma coisa palpável e real, e as nuvens são vistas de cima. A aviação, ainda que considerada uma profissão charmosa e com certo mistério, parece, não costuma suscitar o surgimento de profissionais sensíveis dispostos a transformar em livros seus pensamentos e percepções quando observam a paisagem do alto para baixo. Os autores consagrados: Saint Exupery e Richard Bach, talvez os aviadores-escritores que mais êxito tiveram nas suas carreiras literárias, são as exceções que confirmam a regra. Não nos esqueçamos que voar é, além de técnica, arte; Além da habilidade necessária para dominar uma máquina complexa, é a sensibilidade e delicadeza de transformar um mero deslocamento rápido em algo prazeroso e estético. Voar como arte é mais do que dominar as manobras e conhecimentos necessários para decolar, deslocar-se em cruzeiro e pousar com segurança. Voar como arte é “vestir” a aeronave como uma roupa sensível que reage às manobras de quem a comanda, e às forças externas que atuam sobre a fuselagem, superfícies das asas e empenagem; é perder o peso e a consistência, tornar-se insubstancial e transparente como aquele elemento que envolve e apóia a aeronave; é sentir-se como uma nuvem, mais até, é diluir-se e se transformar num ente etéreo, confundindo-se com o próprio ar. Desde que o ser humano iniciou seus deslocamentos pelo ar, já voou bilhões de quilômetros, cruzou todos os pontos possíveis do globo sobre florestas, cidades, desertos, mares e pólos. E, mesmo assim, para sua eterna frustração, apesar das bilhões de horas passadas lá em cima, jamais deixou o menor rastro no céu. Quando por lá passamos, deixamos uma pequena turbulência no ar atrás do avião. Mas logo o céu volta a ser liso e macio como se nada o tivesse perturbado, apagando todo e qualquer sinal de nossa passagem, tornando-se mais uma vez deserto e silencioso. O céu ignora o homem e sua vã pretensão de imitar os pássaros. O céu parece dar um recado para o homem: seja humilde, seu lugar é no chão, aqui em cima você é um intruso e como tal será tratado, não poderá deixar rastros por onde passou, não poderá marcar território onde nunca foi convidado, onde é apenas tolerado. Mesmo que tenhamos, por algum tempo, tentado fazer parte daquele elemento, o ar, não nos é dado a faculdade de deixar marcas que atestem nossa passagem por lá, somos perfeitamente desconhecidos pelos céus. Se nos resta algum consolo, é saber que os pássaros e todos os que se atrevem a voar também não deixam rastros. O céu é soberano, os pretensiosos seres que se alçam aos ares nunca terão a felicidade tornar seus os elementos que envolvem e fluem em torno dos corpos
Jair Lopes
Enviado por Jair Lopes em 02/08/2017
Reeditado em 02/08/2017
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