FERREI-ME COM A PALMATÓRIA! MINHA PRIMEIRA SURRA NA INFÂNCIA

Quando eu retornei a Santa Maria da Vitória lá pela primeira metade dos anos 1960, sofri uma barbaridade para adaptar me ao novo estilo de vida. Imaginem vocês, morar em São Paulo, talvez a principal capital do Brasil em todos os níveis, com uma série de confortos como televisão, luz elétrica, asfalto, ônibus, bonde elétrico, trem de ferro, asfalto, água encanada, chuveiro elétrico, telefone, sanitário de louça com descarga e outras coisas mais e chegar a uma cidade onde não se tinha nada disso mencionado por mim.

Ave Maria! Não me foi fácil! Eu não tinha, por exemplo, noção do que era um sanitário de latrina, casas alumiadas com luz de lampião, apenas uma torneira no quintal que tinha horário de fornecimento de água, normalmente os banhos eram no Rio Corrente às tardezinhas. Tirando o sanitário de latrina, aos poucos eu fui me acostumando ao novo ritmo de vida. Claro que no ano seguinte a luz elétrica chegou a nossa cidade e por consequência a água encanada, cujo abastecimento passou a ser efetuado por bombas elétricas e não a óleo. Com a chegada da luz, passamos a ter dois cinemas na cidade, sorveterias, serviço de autofalante e, sem alternativas, à medida que chegavam os novos benefícios, eu também ia me inserido nos costumes da cidade nesta minha nova vida.

No ano da minha chegada eu fui morar no colégio interno de Dona Rosa com minha irmã Rica e com a minha mãe, que naquele primeiro ano trabalhou como cozinheira. Claro que eu sentia uma diferença gigantesca entre a vida vivida em São Paulo e o novo sistema de vida ali naquele colégio interno, no fim do mundo, com regras rígidas, fato ainda não captado por mim, mas que acabou acontecendo logo após um fato interessante que narrarei logo a seguir. Ressalto que este lugar no fim do mundo era a minha terra natal. É que sai com seis meses de nascido e retornava com cinco anos de idade, aproximadamente, tornando Santa Maria da Vitória uma cidade nova e estranha para mim.

Era uma linda manhã de domingo, com o céu sem nenhuma nuvem e com um sol totalmente brilhante lançando raios fúlgidos por toda a cidade. O Domingo era o dia oficial da escola dominical na Igreja Presbiteriana de Santa Maria da Vitória e como o colégio de Dona Rosa era vinculado à comunidade Presbiteriana, todos os alunos internos tinham como rotina a frequência obrigatória em todas as atividades da igreja.

A igreja funcionava no Auditório Henrique M’Call e tinha como rito uma abertura na primeira parte com preleções religiosas e depois se processva as separações de classes dominicais, de acordo com as faixas etárias. Eu fazia parte da Classe dos Cordeirinhos a qual se reunia na casa de Seu Aldegundes na sala de visitas. Justo neste belo domingo com céu de brigadeiro, ao encerrarmos as atividades ali na casa de seu Adelgundes, ao iniciarmos o percurso de volta para a igreja, eu e um colega interno de nome Diltinho, nos distanciamos do grupo, adentramos no Beco de Celsinho e ganhamos o mundo na várzea onde funcionava o campo de futebol da cidade.

Deixando o grupo de lado, caímos na gandaia! Ao redor da várzea não havia uma quantidade grande de casas: apenas os quintais das casas da Rua Ruy Barbosa que faziam divisa com a várzea, e só depois do Riacho seco é que algumas casas apareciam. Livres igual que nem pássaros, nós curtíamos a nossa liberdade desatinada sem nos preocuparmos com as consequências do nosso ato de molecagem. Aliás, nem sabíamos o significado da palavra consequência e nem tínhamos conhecimento. Estar livre naquele momento curtindo aquela experiência de uma desobediência naquele momento era a coisa mais deliciosa que experimentávamos na nossa vida.

Bem, aquela sensação de liberdade finalmente chegou ao fim, quando um aluno mais velho do internato nos encontrou a pedido de Dona Rosa Oliveira Magalhães, que era a diretora e fundadora da instituição, e, ao retornarmos pelo mesmo Beco de Celsinho conduzidos por este aluno mais velho, deparamos com a diretora à porta da entrada da casa com as mãos na cintura e com aquele olhar de reprovação.

Ela nos mandou que entrássemos no seu quarto e seguiu atrás de nós, e com o seu jeitinho sereno sentou em uma cadeira de costas para a pequena mesa onde ficavam alguns livros. Pediu que nos aproximássemos dela e com a cara de cachorros travessos ouvimos a lição de moral que nos foi dada naquele momento. Não me lembro de nenhuma palavra que foi dita naquele momento, nós ficamos tranquilos. Deu se a impressão de que ficaríamos apenas no diálogo. O que chamariam hoje de pedagogia do bate papo! Mas foi um ledo engano que cometemos naquele momento.

Dona Rosa pediu que Diltinho esticasse as duas mãos e as mantivesse em posição horizontal. Rapidamente ela se virou para a mesa e pegou um artefato de madeira que tinha um cabo de mais ou menos quarenta centímetros e na ponta um formato redondo. A espessura era de mais ou menos três centímetros. O artefato era a terrível palmatória que assombrou os alunos brasileiros por séculos. Ela segurava as mãos de Diltinho alternando direita e esquerda para desferir as pancadas com aquele artefato parecido com uma colher de pau, mas sem o tal do baixo relevo. Eu não entendia o motivo de Diltinho de chorar a cada pancada desferida na palma da mão. Achava eu que nas mãos não poderíamos sentir nada! Outro ledo engano!

Chegou a minha vez. Já desconfiado eu estirei os braços com os punhos cerrados

- Mãos abertas! Gritou Dona Rosa já puxando a minha mão esquerda a primeira escolhida.

Nas duas primeiras pancadas, embora o céu lá fora estivesse com o azulado total e o sol brilhando intensamente, eu consegui ver o Cruzeiro do Sul ali mesmo dentro daquele quarto. Na segunda e quarta pancadas, o formigamento no pulso já foi gigantesco, e eu começava a ver a Via Láctea! Parecia que as minhas mãos sairiam dos meus pulsos. Assim que a sequência das pancadas nas palmas das minhas mãos a dor foi passando para braço, antebraço até chegar nos ombros. O pior é que eu não chorava de jeito, tamanha fora a minha surpresa diante daquela cena onde eu era um protagonista. Até então eu nunca tinha tomado surra alguma em toda a minha.

Claro que depois desta primeira eu teria uma centena delas, mas foi a única vez que eu apanhei de Dona Rosa Oliveira Magalhães, como se ela desse o seu cartão de visita e o manual de comportamento no colégio interno. Ensinaram-me mais tarde que eu deveria chorar logo na primeira pancada. Foi o que fez Diltinho. Acho que aquela não foi a primeira surra dele pelo simples fato de ele fazer um escândalo, embora dona Rosa o mandasse calar a boca. Por isso só tomou meia dúzia de bolos. Não tinha nada de bolo porra nenhuma. Bolo era o nome dado para as pancadas desferidas com a palmatória. Eu tomei doze bolos e como eu não chorava e só me retorcia a cada pancada, as seguintes vinham carregadas de maior intensidade.

Aprendi anos depois que apanhar de palmatória, obedecia se um escore nacional. De acordo com a gravidade da indisciplina poderíamos receber de dois a doze bolos, sempre em números pares para que cada mão recebesse a mesma quantidade de pancadas. Todavia, o aplicador da punição em apenas duas pancadas usava de uma força tão brutal que dava se a impressão das doze pancadas. Só nas sabatinas de tabuada é que se aplicava uma pancada que era dada pelo colega que acertava no que errava. Sempre sentávamos do lado das nossas pendengas.

Graças a Deus que em meados dos anos 1970 extinguiram a palmatória da pedagogia brasileira. Alguns amigos dizem que na época da palmatória se respeitava muito mais e se fazia mais cidadãos honrados. Com certeza quem fala isso nunca apanhou de palmatória. Dependendo das pancadas ficávamos com dores no pulso e nos braços por pelo menos uma semana.

Tenho dito...

Joãozinho de Dona Rosa
Enviado por Jota Kameral em 30/07/2017
Reeditado em 02/08/2017
Código do texto: T6069506
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