Nós, os “perdedores” da contemporaneidade
Não estava sendo um dia bom. Mais um. Aliás, os últimos tempos têm sido bastante sombrios.
Saía do R.U. e retornava para a casa. No caminho, logo no primeiro cruzamento do centro, uma família apontava o dedo para o carro de polícia, indicando o “moleque” que trajava roupas velhas, sujas e levemente rasgadas. Mais atrás, corria um rapaz manifestando que o “moleque” o perseguia. Um policial, já demonstrando conhecer o “elemento”, sai do carro esbravejando, dizendo para o tal sumir da frente e que estava cansado de olhar para aquela cara que só lhe trazia problemas.
Continuo a caminhada e percebo que o “moleque”, se livrando temporariamente do esporro policial em público, vem logo em seguida na mesma direção. Paramos no segundo cruzamento no aguardo do sinal verde. Ouço-o proferir todos os palavrões possíveis em tão pouco tempo destinados à classe média curitibana, como algo do tipo: “tenho raiva desses playboys filhos duma puta!”
Atravessando a avenida, seguimos em direção à praça Santos Andrade, cartão postal e conhecida por ser reduto de manifestações democráticas e eleitoreiras. À minha frente, ziguezagueando, olhando para trás e para os lados, e destilando o seu ódio, o “moleque” observa os motoristas que lhes assistem e manda mais uma vez o seu recado: “vão se foder playboys do caralho!” “Tá olhando o que sua vadia? Tá querendo me adotar eh?” “Seus porra.” “Ninguém sabe o que eu passo.” “Eu que dou problema neh!”
Quando chegamos no terceiro semáforo, aguardamos mais uma vez o sinal abrir e eis que me transformo no seu alvo. Ele primeiro me observa de cima a baixo. Estou, aparentemente, bem vestido. Apesar de trajar um vestuário barato, o mesmo se compõe de sapatênis, calça jeans preta, camisa listrada clara e jaqueta preta de courino. Mesmo com a barba grossa e rala, os cabelos crespos e o rosto escuro e castigado do sol e dos anos, a parte superficial que me veste pode ter lhe transmitido certa sensação de que eu também faço parte da classe média. Depois desse breve exame visual, ele me interpela objetivamente: “é o que que vc tá olhando também, seu playboy?” Naquele instante, de modo inesperado e automático, não aguentei e parti para o embate: “é o que que vc quer seu porra? Tá achando que sou playboy eh, caralho? Não sabe nada da minha vida, assim como não sei da sua. Vai se foder, caralho!”
O sinal abre e, daquele momento em diante, atravesso sozinho e, por alguma razão, o “moleque” resolve permanecer ali no semáforo. Ainda olho para trás e encaro-o mais uma vez. Ele está me xingando, dessa vez, com um volume mais baixo. Consigo recuperar sua última tentativa de comunicação direta comigo: “tá com raiva eh?”
Alguns metros mais à frente começo a falar sozinho em voz alta. Estou nervoso, meu corpo treme e sinto uma sensação confusa, que mistura compreensão e cumplicidade pela raiva daquele que é visto pela sociedade de “bem” como um “moleque” e só, mas, ao mesmo tempo, sinto, também, uma raiva de ter me tornado o alvo daquele que acabara de ser esculachado em praça pública pela repressão do cotidiano. Compreendia-o, mas não aceitava receber o mesmo enquadramento.
Continuando minha caminhada, tento relembrar o itinerário dos momentos recentes, antes mesmo do diálogo que tive com o “moleque”, e consigo captar a compreensão que tive e que ainda tenho da situação daquele que está à mercê do julgamento da classe média brasileira. Sinto a mesma raiva dos “playboys” que ele sente. Também gostaria de que nem sempre as coisas fossem desiguais. Mas, sei também dos meus problemas e das dificuldades que enfrento. Não posso mensurar o que ele vive todos os minutos da vida. Sei que não vive fácil. Mas, por sua vez, ele também não pode apenas me olhar e saber quem eu sou, ou de que lado estou.
No final das contas, somos todos os perdedores, enquanto aqueles que estão acima nos assistem de seus carros, apartamentos e torres de marfim. Do mesmo modo, a classe média e os “playboys” se protegem durante o dia nas ruas da cidade, mas, à noite, se deleitam com séries, reportagens e filmes que representam a barbárie da luta pela sobrevivência cotidiana.
Curitiba, 29/07/2017