Remanescente


Outro dia me dei conta, inesperadamente, que ao final da rua onde moro existe uma relíquia.
Moro neste bairro a menos de três anos e por isso, de vez em quando, me deparo com algo novo... ao menos pra mim. Ali, ao meio fio, em frente à parede de um bar onde os homens se encontram, principalmente nos finais de semana para beber, jogar e confraternizar, ele está. Tecnologia ultrapassada, remanescente de uma época muito louca e ao mesmo tempo criativa, onde a modernidade se expandiu e se instalou em termos nunca antes imaginados.
Impávido colosso (plagiando Osório Duque Estrada), testemunha de uma geração que foi reprimida e calada pela ditadura que, entrementes, o liberou para servir de porta voz ao povo em qualquer tempo, hora ou lugar. A ditadura fazia isso de dar à população um agrado, um pequeno luxo para fazer de conta que tudo estava bem.
Surpreendi-me verdadeiramente ao ver que havia uma pessoa usando-o, assim, descaradamente, em plena luz do dia, sem nenhum acanhamento, quando, na realidade, eu nem sabia que ainda existia exemplares disso por aí a fora. São tão poucos e raros que paramos de prestar atenção neles.
Antes eram encontrados em qualquer esquina da vida, para emergências e urgências, assuntos relevantes ou amenidades.
Desde o dia desta incrível descoberta sempre que saio pela cidade ou pelos bairros vizinhos fico olhando ao longo das ruas para ver se encontro outro, pois, na época em que foram criados, eles eram uma legião pelo país inteiro.
Ele continua ali, praticamente abandonado, feio e fedido, imagino eu, e espanta-me o fato de ainda funcionar e alguém fazer uso dele com tantas outras opções modernas em matéria de comunicação que temos à disposição hoje em dia.
Espécie em extinção, já funcionou com ficha e sou testemunha ocular disso, depois com cartão, e foi o palco de todos os tipos de vandalismos possíveis, quando, ter um telefone em casa era uma ostentação para poucos.
É apenas um simplório orelhão, com aquele design que deu tão certo que nunca foi mudado, criado por uma chinesa naturalizada brasileira; contudo permanece de pé, num último sopro de vida, obstinado, como se ali estivesse enraizado. Até quando não sei.
Roseli Schutel
Enviado por Roseli Schutel em 29/07/2017
Reeditado em 18/09/2017
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