Uma Rua Íngreme

Naquela rua íngreme, tão íngreme, carros nunca desciam sem que o motorista tivesse a certeza de que os freios estavam em perfeitas condições. E se a descida era intimidada pelo risco de descontrole repentino do veículo, a subida, por sua vez, era um desafio intransponível para os motores.

Assim era e ainda é a antiga rua Major Martiniano, atualmente denominada de rua Osvaldo Elache, onde até os pedregulhos parecem se esforçar para não saírem eles mesmos rolando ladeira abaixo.

Ali nunca houve garotos jogando futebol, pulando corda ou brincando de pega-pega. Qualquer desequilíbrio implica o risco de você se espatifar até o pé do morro, com grande probabilidade de graves lesões.

Talvez por isso mesmo é que nunca vi um bípede subindo ou descendo a Major Martiniano de forma ereta e garbosa, como um digno descendente do “homo erectus”, mas sempre com certa curvatura para a frente e os olhos atentos ao chão, as mãos prontas a buscar apoio em caso de algum imprevisto e aquele aspecto de certa temeridade estampada no rosto.

A inclinação da rua deve ficar entre 45 a 50 graus, no mínimo, o que explica o fato de só se ver pessoas caminhando pela sua escadaria lateral, jamais arriscando um passo pelos paralelepípedos fora da calçada.

Na infância, quando aos sábados e domingos ajudava meu pai como lavador de chapa de retrato na praça N. S. de Aparecida, sempre na hora de ir almoçar em casa costumava ficar sentado mais ou menos no ponto médio daquela escadaria, de onde era possível enxergar boa parte da rua Floriano Peixoto, onde eu morava. Dali dava para ver o movimento das pessoas, o entra e sai das casas e até meus irmãos em correria pelas calçadas, inocentes de que lá de longe eu os observava como uma sentinela.

Certa vez, estando eu ali sentado por mais de uma hora, um morador antigo de uma casa de altos e baixos observava-me da janela. Talvez por não entender o que um garoto faria ali perdido em pensamentos por tanto tempo, deduziu ele que eu estivesse precisando de comida e me perguntou se eu estava com fome.

E não é que por ironia do destino, anos mais tarde fui morar justamente naquela rua, e mais curioso ainda, fomos morar eu e meu irmão no porão daquela casa, cujo dono anos atrás me ofereceu comida?

O período de 2 anos que ali morei foram tão marcantes e intensos que eu poderia escrever um livro somente com as histórias ali vividas.

Cenas interessantes aconteciam e certamente ainda acontecem por ali, como por exemplo, a de uma senhorinha se esforçando para subir degrau por degrau aquela infinidade de lances de escada com uma bengalinha fina na mão. Incansável, a anciã seguia em frente, ou melhor, seguia à cima, sem esmorecer.

Mas tenho que confessar também um certo sadismo dos tempos de mocidade, quando por vezes ali me degustei de cenas hilariantes de bêbados se aventurando na descida, em que o efeito já conhecido da cachaça era potencializado pela vertiginosa inclinação da rua, fazendo com que, por vezes, o cidadão preferisse descer a ladeira se arrastando com a bunda no chão a arriscar um passo em falso no vazio e ir parar lá na terra dos “pé juntos”.

Contudo, o que guardo como um tesouro dentro do peito é a consciência de que foi ali, na antiga rua Major Martiniano, que decidi dar um rumo na vida e percebi que o único caminho possível seria me dedicando mais aos estudos.

Naquela época de penúria, sequer uma mesa naquilo que chamávamos de quartinho havia para colocar um livro. Não obstante, a força de vontade que ali brotou em meu coração foi suficiente para dar a solução perfeita, que foi pegar as apostilas e o caderno que tinha e mergulhar em profunda concentração em plena calçada da rua, ou mesmo ao pé da única árvore que até hoje ali se encontra ao pé do morro, centenária e fiel testemunha de sonhos e de lutas particulares, meus e certamente de outros.

Às vezes penso que toda aquela dificuldade característica da própria ladeira servia de metáfora para muitos caminhantes que ali andaram, como um ensinamento dos céus de que na vida nada se conquista sem dificuldade. De fato, ali não se chegava ao topo da ladeira sem grande esforço e muita dedicação.

No dia em que me mudei definitivamente da cidade de Aparecida, em 1 de agosto de 1992, rumo à desconhecida Belém do Pará, foi lá do alto da escadaria, em frente ao Hotel Batista que, por volta das 5:30h da madrugada, parei e observei aquela rua ainda escura e silenciosa pela última vez, fitei os céus, contemplei a lua brilhante lá no alto e lancei a seguinte mensagem em pensamento: “por mais longe que eu possa estar, sempre poderei olhar para esse mesmo céu e enxergar essa mesma lua. Assim, sempre me sentirei aqui, bem pertinho, não importa onde eu esteja”.

E assim fui conhecer outras ruas, outras árvores, outros sonhos, mantendo comigo as raízes fortes daquela árvore velha ao pé do morro e a determinação de um coração que se fez ainda mais forte de tanto subir as escadarias íngremes da velha Rua Major Martiniano.