Duas rodas!
Os carros e as outras motocicletas pareciam persegui-lo como famintos e vorazes predadores!
Com seus rugidos, num crescendo contínuo, sobrepondo-se até mesmo ao ar, que desapercebido, desistia de oferecer-lhe resistência. Aliás, esse deslocamento aéreo, deveria ser uma das primeiras sensações agradáveis a serem reconhecidas após dez anos sem subir numa moto.
Eram outros tempos e a necessidade se impunha tão ditatorial e intensamente, que já não sobrara espaço para o prazer em nenhuma atividade na exacerbada rotina daqueles dias. A retaguarda ameaçadora e as urgências à frente não deixavam entrever a vida que desfilava sua invisível exuberância em cada detalhe escondido nas luzes, num “strip tease” para cegos, cujas mãos houvessem sido decepadas. Perguntava-se, sem ouvir ou pronunciar tal interrogativa, o que mudara tanto nesses dez anos que o afastaram da necessidade de usar aquele veículo como meio de transporte? Seria a cidade, ou as pessoas que a faziam mover-se como se suas ruas fossem tentáculos de um gigante, incapaz de segurar as várias presas que tentavam desvencilhar-se de sua indesejada obrigação de aprisioná-las?
Lembrava-se, sem saudades, das diferenças que esses poucos anos produziam imperceptivelmente em si mesmo, e em todos que conhecera “naquele tempo”, e com os quais ainda mantinha contato. Percebia em todos, (e supunha fruto, muito mais do desinteresse pela auto preservação física, advindo da necessidade de seguir a ditadura do enriquecimento, e da almejada subida ao "pódium" da disputa social, ou ainda do conformismo produzido pelo abandono consensual, esse que ocorre inexplicavelmente, ao menos a seu ver, de todos os aspectos que seriam supostamente "mantenedores" da juventude do corpo e do "espírito", tais como a busca por definir o que se quer ter, e quem se quer ser na vida, do que pela própria ação do tempo), um comum e acelerado envelhecimento não apenas físico, mas, e sobretudo, de atitude, de sentir-se vivo, sentir-se apto, sentir-se ainda jovem , não vestindo-se, falando ou comportando-se de modo caricato “como jovem”, mas, e sobretudo, “querendo”, como querem os jovens. Sentindo-se, desejando, desejando aprender e percebendo quanto se cresce quando se aprende, e quanto isso nos mantém pequenos que é a essência do crescimento em si.
Por que voltar a andar numa motocicleta, e adotá-la como meio de transporte diário, parecia a todos tão louco ou suicida assim nos dias de hoje? Claro, haviam mudanças significativas no comportamento das cidades, nos seus números auto multiplicáveis, nos seus reduzidos espaços que nunca serão suficientes para o quanto se acha que se precisa crescer. Mudanças na falta de tolerância, respeito e educação, na sua pressa em direção ao próximo stress, etc. Esses fatos subvertem a razão de existir de um veículo como aquele, provavelmente criado não apenas para locomover ou transportar o homem e agora servia para dar-lhe mais mobilidade e aumentar sua pressa. Pressa essa, que anda de mãos dadas com o risco, embora pressa, velocidade e risco, não sejam a mesma coisa. Nem velocidade e liberdade, ainda que, às vezes, uma seja convidada da outra.
Naquele dia, a sensação mais forte, no entanto, mesmo acompanhada de uma imensa insegurança de primeiros metros, foi de prazer intenso, como uma volta a uma juventude que só a aventura e "o bom risco" são capazes de proporcionar. Como se naquele desafio e justamente por sê-lo, estivesse a fonte da juventude, não importando nenhuma cronologia. Isso não é para ser contado, é para ser sentido, com todos os sentidos. Ouvir, ver e tocar todos os riscos que é estar vivo e fazer parte de um mundo que precisa redescobrir a juventude. Fazer as coisas por fazer. Ou, se por necessidade, associar a isso o máximo de prazer. Moto é isso, prazer e transporte, ou transporte e prazer ou mais ainda transporte AO prazer.
Julio Miranda
Músico , cantor, compositor, letrista, locutor, poeta, escritor, palestrante, coach & mentor.