Mulher, preta, pobre, lésbica... PRESENTE

“Isso é uma palhaçada”

Cenário: centro de São Paulo. Palco: as ruas. Artistas: mulheres negras e indígenas. Peça: Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.

Era por volta das 17:12. Desci do ônibus na Rua São Luis. De longe se avistava uma pequena parcela de mulheres, com faixas, instrumentos, alto-falantes, câmeras, turbantes, penas, cocais, rostos pintados, cabelos armados, e sorrisos, muitos sorrisos nos rostos.

Me dirigi ao mercado, queria vinho mas não tinha a fermentação barata que eu costumo tomar, resolvi então comprar duas cervejas, era o que as poucas moedas podiam pagar, sai de casa com o bolso cheio de moedas, mas nenhuma nota. Notas são raridades hoje em dia, quase extintas, a onda da vez é o magnetismo sabe?

Eu tinha marcado de me encontrar com uma amiga, enquanto eu a esperava chegar, sentei no meio da praça Rosselvelt para observar a humanidade. A cerveja quente, garotas e seus bambolês, garotos e seus skates, senhoras e seus cachorros, fumaça, cachaça, tambores... Tambores e atabaques ao fundo, tamborilando incessantemente com as buzinas e as vozes.

Quando eu ia tomar a segunda cerveja, a garrafa caiu e explodiu ao chão, deixando o cinza encardido com cara de novo após receber um banho de espuma. Amaldiçoei. Catei os cacos. Levei as garrafas ao lixo. Parti rumo à concentração. Um senhor sorriu para mim e começamos a conversar. Liguei varias vezes para ela, chamou, chamou e caiu na caixa postal...

Como eu vou encontrá-la no meio de tantas mulheres? Os olhos buscavam incessantemente alguém conhecido, mas acabou encontrando varias pessoas iguais...

Um dia me disseram: - Preto é tudo igual!

Só hoje eu fui entender o significado de igualdade. Não que fossemos iguais na cor da pele, mas sim... Soldados iguais em suas missões de luta e resistência.

- Mana aonde você ta? Vem pra cá agora que a marcha já vai começar, corre...

Tambores batendo, pessoas marchando, mensagens sendo passadas, corpos dançando, abraços sendo dados, sorrisos sendo recebidas, músicas sendo tocadas, correntes sendo formados, discursos sendo realizados e energia... Muita energia sendo desferida. Mulheres negras, homens negros, mulheres indígenas, homens indígenas, crianças, lésbicas, travestis, transexuais, heterossexual, bissexual, católicos, protestantes, umbandistas, candomblecistas, ateus, brancos, periferia, condomínio. Todos juntos caminhando pela igualdade dos direitos e combate as opressões e injurias sofrida por um sistema embasado numa padronização patriarcal machista e preconceituosa.

Confesso, nunca participei de nada do tipo, sempre fui mera espectadora, observando tudo de longe, do outro lado da rua ou onipresente. Mas ontem, 25 de Julho de 2017, não. Este era o dia do surgimento de uma nova era.

Eu, preta, pobre, lésbica. Nós, mulheres negras, pobres, lésbicas. Reconhecidas, representadas, aceitas, amadas, em luta e em xeque.

Reflito eu, no meio da noite, em frente de um palco, Luana Hansen cantando, mulheres negras dançando, eu... De braços cruzados, olhos fixos, ouvidos abertos, no peito um grito... EU, MULHER NEGRA RESISTO.

Liberdade, aceitação, caridade. Quando olhamos para dentro de nós mesmo e vemos como realmente somos, tão pequenos, tão falhos, tão amedrontados...

Mas, e se ao invés de sermos o que nos disseram que éramos nós simplesmente fossemos o que realmente somos? Se seguirmos aquele velho ditado: Você é do tamanho do seu sonho. Será que seriamos realmente tão grande quanto?

Se sonhamos constantemente em transitar por ai com a liberdade que nos cabe, com a roupa que nos deixa confortáveis, com o cabelo da forma que queremos, de mãos dadas com quem desejamos, ocupando espaços que são nossos por direito, então, acho que somos sim tão grande quanto nossos sonhos. Pois, nada mais grande do que sermos nós e reconhecermos no outro a nossa própria igualdade e ainda assim sorrirmos, adiante, resiste, persistente, feliz, liberto e jamais a sós.

Hoje, eu tenho orgulho da minha cor, do meu cabelo e do meu nariz. Sou assim e sou feliz. Índio, caboclo, cafuso, criolo! Sou brasileiro!

Claro... Antes que eu me esqueça, no meio do ato uma mulher branca mudou o seu trajeto, parou em frente da marcha, olhou todas aquelas mulheres sentadas, com suas faixas e suas mensagens de resistência, ouviu seus gritos de protesto e clamor por direitos igualitários e disse: - Isso é uma palhaçada!

Hoje, eu aqui penso comigo: “Palhaçada é mudar nosso trajeto por medo de amar aquilo que somos. E nisso não há nenhuma piada.”

Mvitoria
Enviado por Mvitoria em 26/07/2017
Código do texto: T6065820
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