ÀS ELITES, UMA SÚPLICA DO ASFALTO

Hoje, o lugar poderia ter sido qualquer cantinho do Brasil, desde uma bela praia longínqua até um cidadezinha interiorana perdida no mapa.

Mas...era São Paulo, da não periferia.

Mais precisamente era a Sampa do Caetano, aquela mesma das esquinas que AINDA nos revolucionam ao acontecer nos nossos corações.

Era aqui, na antiga “terra da garoa”-lembram dela?- hoje mergulhada no carbono da tela e da moldura, a da promessa de sonhos duma vida melhor aos cidadãos do mundo, a grande megalópole da Paulista de todas as tribos, do sincretismo cultural planetário, da diversidade que encanta, a cidade de braços abertos, a poetizada "selva de pedra", a megalópole que não para nunca.

Enfim, a cena aconteceria numa grande avenida da minha, da nossa cidade.

E eu , em meio a tudo que não anda mas desanda, estava ali ,parada no semáforo dos automóveis, a contar meu tempo curto para que o trânsito andasse e me permitisse chegar ao dentista.

De repente, como se numa fotografia compacta que nos mostra as vísceras, eis que avisto um flash de cena comuníssima da nossa mesmice social, não fosse pelo arremate com alguns detalhes CINÉTICOS que nos fazem repensar o todo “comum” engessado que nos iguala em algum ponto desses nossos dias surreais.

Por entre os carros da fila da direita e a da minha esquerda mais atrás , lá estava ele, trêmulo, em meio ao asfalto quente, descalço e semi-nú, a correr o risco de atropelamento pela fila incessante do meio, a das motos em sinfonia estridente e cacofônica, a equilibrar um pires de porcelana surrada com alguma moedinhas e a bater desesperadamente no vidro do motorista, fechado e insufilmado, que, invencível, logo se foi na abertura do farol.

O que vi em seguida foi duma coreografia chocante, cortante.

Embora hoje, pelas ruas, o aspecto aparente dos pedintes muito se distancie de sua idade cronológica, pude calcular seu tempo de vida pelo conjunto da expressão corporal, por volta da sétima década.

Assim que o automóvel acelerou , ele, num ato hercúleo de força física, o tentou segurar pela maçaneta da porta, na esperança de retrocedê-lo ao seu desespero. Foi o que senti profundamente.

Engoli seco, como se ali se fechasse a cortina duma cena muda e gritante do teatro da vida insana.

Ato contínuo, logo mais a tarde, na rede social, eu lia um post dum eminente professor, doutor em ciências das humanidades, que opinava sobre algo do nosso momento e se referia a um termo, na verdade uma expressão meio anônima, mas bem usada e muito batida nos tantos discursos do entorno:“ as elites”.

Leiga que sou na matéria, e em sincera vontade de entender e aprender, eu lhe perguntei do que afinal se trata esse termo meio abstrato, algo incógnito para mim, se haveria um um conceito mais prático, compacto, acadêmico até, uma vez que o percebo usado em algumas situações bem antagônicas entre si.

Ele, gentilmente, me respondeu que há inúmeras enciclopédias muito complexas sobre esse tema extenso -“as elites’- que lhe seria impossível conceituá-lo ali, e que eu, com todo o rigor que a situação merece, me informasse na Wikipédia.

Instantaneamente, voltei à minha cena matutina descrita e, então, entendi que respostas complexas simplesmente estão na vida.

Não há enciclopédias que expliquem os pormenores invisíveis à razão.

Aquela me fora a cena mais professora de todas!- e àquele anônimo ser pedinte eu lhe devo a lição mais clara sobre os nossos dias de hoje.

Foi ele quem me respondeu à minha ânsia acadêmica:

Elite somos todos nós, os que ainda temos um dente e um pedaço de pão para mastigar e engolir a seco.

Entendi que, pelos tempos e do seu modo, cada “elite” constrói a própria SÚPLICA pelo ASFALTO da sua triste e anônima História.