O Cigarro, a Caneta e a Postura

Era manhã.Fazia um frio danado, eu caminhava na rua Ouvidor Freire, rumo a uma consulta médica, quando algo me chamou a atenção. Mania estranha é essa de ficar observando tudo. Mamãe sempre me repelia; julgava me louca, mas o fato é que na infância tive muito tempo, tempo até demais para questionar e duvidar de tudo.

Voltando ao assunto da rua do Ouvidor, duas mulheres conversavam. Uma era loura e esbelta, parecida com Agneta Fältskog, uma das integrantes do grupo Abba. A boneca, trajada de um casaco preto e jeans desbotado, fumava deliciosamente seu cigarro, este, preso levemente pelos dedos longos e finos, adornados por sensuais unhas vermelhas.

A bela, ouvia atenciosamente uma senhora que aparentava meia idade, de vestido florido e cardigan rosado. Indignadamente a pobre mulher falava, gesticulava, balançando num gesto de desaprovação a cabeça e as bochechas fofinhas, avermelhadas pelo frio. Chorava, estava atônita, parecia que algo de muito mal lhe acontecera. Segurava copiosamente a mão de uma garotinha mulata, uma linda criança, esta que parecia não entender muito bem o que estava acontecendo. A expressão de serenidade da Barbie da Ouvidor aos poucos foi acalmando a senhorinha. Ouvira tudo atenta e somente no final do relato esboçou suas palavras. Por fim, carinhosamente, a mulher abraçou ternamente a moça loura, essa que lhe retribuiu com um belo sorriso. Senti vontade de participar daquele momento. Quanta ternura!!

A senhora foi embora, afagando os cabelos da garotinha, e a loura permaneceu ali por mais alguns instantes, e me fez-me pensar em algo que Rubem Alves outrora me contara:

“As pessoas não amam o falar bonito. Amam o ouvir bonito”. Naquela hora compreendi, que a moça loura, disso sabia, e muito bem.

Continuou a fumar tranquilamente recostada ao muro. Seus pensamentos esvaeciam com as argolas de fumaça que se formavam no ar, o que logo trouxe-me a memória algumas reflexões do meu querido Álvaro de Campos, no poema Tabacaria:

“Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los (versos) ”e saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos”.

Não venho aqui pois fazer apologia ao hábito de fumar, de incentivar qualquer pessoa a fazer isso. O que me captou a atenção foi a expressão. A moça loura tinha a mesma tranquilidade que quando, relaxadamente papai, nas escadas enrolava o palheirinho, relatando as dificuldades que tivera no manejo com o gado, na labuta do dia a dia. O cigarro era um tranquilizante, um relaxante que lhe trazia gozo, satisfação, uma massagem no ego do vício.

As memórias da expressão da moça loura e de papai me fizeram recordar outras palavras do velho Rubem: “As pessoas são aquilo que gostam”.

Acho o máximo a capacidade das pessoas de projetar nas coisas que fazem por prazer sua personalidade, de botar aconchego, ternura e até rusticidade. Conhecemos muito delas, um pouquinho mais ainda, depois de lermos suas autobiografias. Voltando ao assunto do cigarro, como não se lembrar da minha querida Bonequinha de Luxo, Holly Golightly.Aquela comprida piteira e as luvas pretas marcaram um tempo, e até hoje incendeiam mentes, ainda ditam moda, cinema e fotografia. Boêmia idealizada. Ouço Moon River e arrepio! Não passo pela Tiffany's tomando um gordo breakfast após uma noite regrada. Tenho uma mania diferente. Gosto de ir aos sábados nas diversas lojas dos japoneses (ou chineses) os orientais que me perdoem, (sempre os confundo), no centro da cidade. São tantos objetos, tantas cores, tantas utilidades e inutilidades também. Pura distração. Lá é meu porto seguro quando estou no “vermelho”, para saciar o desejo de consumir, e assim matar a lombriga capitalista.

Voltando o assunto ao foco principal, faço alusão agora ao fazer poético...a caneta pode transformar-se em escudo ou espada, depende da intencionalidade do uso, dos famosos pontos de vista.

“De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo”. Assim diz a mineirinha Adélia Prado. Lá no fundo o poeta precisa de um descanso, de frescor na mente, o que rememoro nas frases do meu heterônimo favorito, nada metafísico Alberto Caeiro:

“Pensar é estar doente dos olhos”.

Ser poeta é ter dentro de si um turbilhão de possibilidades, instabilidades e devaneios. É tornar-se mártir pelas palavras. Paga-se um alto preço por possuir um HD interno, e até externo, ou vários; é ser insensato, mas é necessário inventar:

“Que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”. Fernando Pessoa soube ilustrar esses sentimentos como ninguém. Todos os poetas deveriam ser remunerados, e muito bem, só pelo ato de pensar.

Moisés ergueu seu cajado e o mar se abriu. Um poeta ergueu sua caneta e ali pariu o fruto da gestação que formigava na mente, nas acolhedoras pautas. Você deve estar me perguntando, afinal, o que tem a ver, cigarro, com caneta e postura?

Quem faz o que gosta, faz com prazer. Relaxamento. Sentimentos imortalizados na expressão da moça loura e de papai. A mesma coisa faz um escritor. Senta-se com classe. Se é fumante acende o fogo e faz brasa, gerando fumaça e fruição. Assim imagino eu as noites solitárias de Clarice Lispector.

Toma uma dose de whisky 12 anos ou vinho. Creio que até café também. Tudo para aquecer o restante do corpo, este já envolto num paletó de lã, brega, porém estimado. Outro detalhe: Tem a sua caneca ou taça preferida; na casa

De um escritor tudo tem o seu aconchego. Mania desorganizada,

Minuciosamente arquitetada, na Casa Mente, Casa Lar, Casa Coração e Casa Pensamentos. Decoração Kitsch entre o real e o abstrato. Após o delito da escrita, descruza as pernas e faz qualquer outra tarefa delicadamente. Um poeta ao meu ver é metamorfose semântica ambulante, que enxerga átomos de significação até num papel de bala. Deixa bater um ventinho e movê-lo... que logo a gostosa melancolia do escritor começa.

Fazendo e vestindo o que for, suas atitudes revelarão muito mais de seu caráter do que uma autobiografia.

Lembro-me do Capitão Jack Sparrow. Provavelmente malcheiroso, adepto ao tabaco, cabeludo e barbudo, porém sempre conquistando o coração das mocinhas. Somos atraídos pelas personalidades das pessoas, por seus dinamismos, pelo que dizem no olhar e exalam na alma. Se é intrinsecamente algo parecido com o que a gente anseia, ou gosta, lá vem admiração, paixão. Isso é explicito em alguns casos de amor que ás más e invejosas línguas não entendem e dizem: “Eles não têm nada a ver”. “O que ele viu nela? ”.

Mesmo vestido em trampos ou fumando tabaco sua postura é que determinará como você será tratado. Repara na postura da onça enquanto caminha. Pablo Neruda me fez enxergar isso de um modo peculiar, através de um poema. Pensa bem: A bichinha anda com autoridade, cabeça erguida e a ponta do rabo levemente curvada, impondo respeito. Sagaz, seus passos parecem sugerir que pisa em espumas...articulada como os caubóis do faroeste num duelo: passos precisos se não a qualquer vacilo...a vaca, literalmente, vai para o brejo.

Tudo isso traz a minha mente as palavras que ouvi em um louvor intitulado Pérola, da cantora gospel Elaine de Jesus:

“Sobre o mundo, Deus já te colocou, você não é cauda; é cabeça aonde quer que for”.

Que sejamos cabeça sempre. Lembrando que humildade, altruísmo e amor são ferramentas eficazes para garantir nosso espaço, e conquistar o nosso devido respeito, este, um direito nosso, e ainda garantido por lei.

Jaque Reiss

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Poeta de Borralho
Enviado por Poeta de Borralho em 06/07/2017
Reeditado em 02/10/2017
Código do texto: T6047308
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