UMA VIAGEM NO TEMPO

Numa esquina das mais movimentadas de Irati,onde a 15 de julho incensada ao jasmineiro de dona Mana cruza a badalada Coronel Emílio Gomes, uma farmácia...
Resistindo à modernidade, guarda em suas formas a magia das antigas boticas, por onde o simples fato de adentrar era uma espécie de  meio caminho andado para a cura.
Fernando, o proprietário, fumava seu cigarrinho absorto na ladeira da 24 de maio que leva ao São Vicente.
A fumaça desenhando delicados caracóis na quase gelada manhã da terrinha.
Só no "Minister" Fernandinho ! Digo-lhe em tom amistoso.
-"Free", seu Teixeira.Responde-me revirando o cigarro entre os dedos para que a visibilidade da marca impressa no papel legitime sua afirmativa.
Alguns minutos de papo (Fernando tem sempre uma boa conversa,além de ser extremamente espirituoso) e adentramos ao estabelecimento.
Peço autorização para fotografar a latinha de "pó Lady", uma raridade que ele faz questão de deixar bem exposta no balcão de vidro.

[Pó de arroz "Lady" da Perfumaria Beija Flor - Rio de Janeiro. Era com esta preciosidade que minha avó materna dava ares festivos à sua face.Depois, minha mãe, minhas tias, e a galera dos anos trinta em pêso. Era o must da época]
Devidamente autorizado,depois  de meu  registro fotográfico, sou convidado a adentrar em seu laboratório de manipulação.
Inicia-se, então ,uma verdadeira viagem no tempo.
O laboratório está desativado, porém , preservado em todos os detalhes e tão limpo, tão organizado,que a impressão que se tem é de que as mãos do farmacêutico estão prestes a manipular mais uma fórmula.
Nas prateleiras, com rotulagens que demonstram a ação do tempo, os sais, as tinturas, os unguentos...Dividem espaço em frascos antigos, fechados herméticamente com rolhas de cortiça em sua maioria.

As denominações são das mais estranhas:
"Tintura de: Simaruba, Mulungu, Badiana, Rathania...


Preso num canto da mesa , um pequeno jacaré de metal. Aparentemente uma peça decorativa, mas não é:

Isso tinha (ainda  tem) utilidade, profere dona Marli, esposa de  Fernando, retirando da gaveta uma rolha de cortiça.
Antigamente só usavam-se rolhas para tapar os frascos.As cavidades existentes sob a couraça do animal, eram utilizadas para reduzir as bitolas das rolhas, deixando-as na medida exata das aberturas dos frascos.Fez a demonstração, num processo muito rápido e eficiente.

A manhã vai fluindo entre divagações e lembranças.
Alguns clics e ...
As balanças de precisão:


O pequeno alambique para destilar água:

O aparelho modelador de comprimidos:

Os pilões onde maceravam-se os pós, a lage de mármore onde preparavam-se as pomadas...

Tudo relatado num misto de entusiasmo, emoção e saudades.
"Cresci vendo meu pai manipulando os medicamentos.Os médicos daquela época prescreviam aos pacientes, medicamentos que eram elaborados sobre esta mesa.Estou (estamos),referindo-se ao casal, cansados e penso em encerrar minhas atividades por aqui.
Só não o fiz ainda,por que o coração não deixa", profere Fernando, com a voz ligeiramente embargada.
Quem me lê aqui  no  Recanto  das  Letras, sabe de meu lado saudosista (não faço questão de esconde-lo rsrs...) e êste "achado", foi algo que transcendeu os limites de meus saudosismos.
Por instantes, enquanto fotografava, relembrei das inúmeras vezes em que curei minhas irritações de garganta com o famoso "Colutol" preparado por Seo Lourival (Viquinho,como carinhosamente o denominavam), das tantas ocasiões em que meus pais retornavam da cidade com as poções milagrosas da farmácia  do Vico, ainda em seu antigo endereço.
Uma placa em homenagem ao cinquentenário de atividades ocorrido em 1998, destaca-se num dos cantos da parede, entre as duas portas amplas que espiam a agitação da esquina.

A meu convite, dona Marli e Fernando, posaram para umas fotos.

Nesta semana que antecede os 110 anos de nossa cidade, meu reconhecimento, respeito e amizade por este casal que preserva com tanto carinho a memória daquela Irati pacata, poética, das ruas de paralelepípedos cerzidas por carroças e alguns poucos automóveis conduzindo gente em busca de melhor saúde e qualidade
de vida:

LÁ NO VICO.

Joel Gomes Teixeira