CORTARAM A PICANHA
Com a faca na mão, olhar determinado de quem não irá recuar, ele fita o brutamonte à sua frente, mede com os olhos seu tamanho, conclui que irá vencer e ataca antes que ele emita qualquer reação.
Meu pai tinha prazer em comprar um grande pedaço de carne, um quarto de boi, com seus sessenta, setenta quilos, levar para casa, pendurar num caibro da garagem e despedaça-lo, cirurgicamente, parte por parte. Ele próprio fazia os cortes enquanto eu, minhas irmãs e a mãe embalávamos pedaço por pedaço para congelar no freezer.
Aquele momento era sagrado para ele. Era o doutor, nós seus assistentes. Ai daquele que ousasse tocar no quarto do boi, algo que só cabia a ele o privilégio, como um dom divino. Ninguém se aproximava até que ele estivesse minuciosamente retalhado. Manias de pais. Respeita-se.
A função corria tranquila quando no momento mais esperado e solene do trabalho: separar a picanha da alcatra, a parte mais nobre do animal, ele olha decepcionado e exclama:
- Cortaram a picanha!
Quem poderia ter cortado? Todos rimos, ele nunca admitiu a culpa.
A frase, virou bordão lá em casa. Usamos até hoje quando queremos eximir-se de alguma besteira que se fez.
Seu Antonio era cheio de narrativas que nos encantavam e faziam nossa vida simples e repleta de privações mais amena e agradável.
Estas histórias são semelhantes a um álbum de fotografias, só interessa a quem aparece nas fotos, mas representou um período mágico de nossas vidas.
Nossa infância fluiu tranquila num tempo bom que não volta, tempo da inocência.
Lá pelos idos dos anos 70.
Família de formação tradicional à época, com um pai do sexo masculino, uma mãe do sexo feminino e vários filhos de ambos os sexos , como também era comum naqueles tempos.
Se hoje sou o que sou, com meus defeitos e qualidades, erros e acertos, devo a estes primeiros anos de minha existência e à presença firme e protetora deste homem que moldou o homem que sou hoje.
Estou falando estas coisas porque neste mês ele estaria completando 90 anos de idade.
Seja lá onde estiver, Seu Antonio Lorenzoni, parabéns pelo seu aniversário.