REMINISCÊNCIAS INFANTIS
REMINISCÊNCIAS INFANTIS
Depos de uma noite de sono tranquilo, desperto e levanto-me bem cedo. Sempre gostei de acordar cedo. Mesmo que não tenha alguma atividade a fazer às primeiras horas da manhã. Não tenho dificuldade pra dormir. Sou bom de sono. Acho que, quem não é preguiçoso, acorda cedo. No entanto, teve uma fase de minha vida que não gostava de acordar cedo. Foram nos primeiros anos da puerilidade.
A criança saudável tem muita energia pra gastar. E consome toda essa energia brincando, durante todo o dia e uma parte da noite. Desse modo, algumas delas, bem exaustas, muitas vezes, acabam por dormir onde estão brincando. E aí, as mães, que estão por ali observando-as, as pegam sonolentas pra dá banho nelas. E só após estarem suavemente cheirosas e vestidas com uma roupinha limpa, as mães as colocam na cama pra se aprazerem com a serenidade do sono pueril.
Me lembro da casa de minha infância. Uma habitação modesta. Mais estreita do que larga em sua frente. Porém, o terreno era comprido. Fora da área construída, havia um terreiro na frente e um espaçoso quintal no fundo. Nos primeiros anos pueris, nem meu pai nem minha mãe deixavam que eu e os meus dois irmãos (eu tenho um irmão e uma irmã) brincássemos fora de casa. Assim, tivemos que nos habituar com as nossas brincadeiras, de dia no quintal e de noite no terreiro.
Pelo fato do sol esquentar a frente da casa em boa parte do dia, o quintal ficava sempre fresco, motivo pelo qual, preferíamos brincar mais no quintal do que no terreiro, sobretudo, na parte da tarde. À noite, quando a família ainda não tinha a TV como opção de lazer, minha mãe costumava sentar-se no terreiro (área livre que ficava na frente da casa recuada), para sentir a fresca noturna e também conversar com a vizinhança, geralmente senhoras e moças, com as quais minha mãe se aprazia num bate-papo doméstico que se prolongava até nove, dez horas da noite.
Por algum tempo, minha mãe cultivou esse hábito noturno. Após o banho da tarde, tomávamos o café da noite mais cedo, entre dezoito e dezenove horas. Porém, nem ela nem os filhos saíamos para a frente da casa, sem meu pai chegar. Só depois que ele chegasse, tomasse banho e jantasse, vendo inclusive, que a família estava reunida em casa, é que minha mãe permitia que saíssemos com ela para brincarmos no terreiro e fora dele, mas por perto, ao alcance dos seus olhos, pelos passeios vizinhos ou no meio da rua pouco extensa e sempre calma.
Meu pai sempre trabalhou como autónomo, exercendo o ofício de alfaiate. Muitas vezes ele teve que adiantar o serviço à noite. Quando isso ocorria, ele vinha em casa à boca da noite, e logo voltava à alfaiataria pra continuar o serviço que precisava ser concluído, visando entregá-lo ao cliente no dia seguinte. Nesses dias de intensa atividade profissional, nos quais meu pai fazia o serão por conta própria, costumava chegar em casa bem tarde, perto da zero hora.
Embora fosse criança, eu estava um pouco mais crescido. Haviam sido inauguradas as luzes de mercúrio na avenida principal que dava acesso à rua que morávamos. Numa dessas noites de serão de meu pai, sabendo que ele ia chegar mais tarde, pedi a minha mãe pra jogar bola com alguns amigos na pista da avenida calçada que ficava do outro lado do canal (hoje o canal Lava Pés está coberto e a avenida foi reurbanizada) por ser menos movimentada de veículos.
Minha mãe, sabendo que meu pai era severo na criação, ficou temerosa em deixar. Ela sabia que se meu pai me pegasse jogando bola na avenida de noite, era surra na certa. Só que eu insisti no pedido, e ela, com a natureza bondosa e mais agradável que a de meu pai, acabou por deixar, mas que eu não me demorasse, alertando-me que meu pai podia chegar a qualquer momento. E lá fui eu, satisfazer a minha vontade infantil de jogar bola na avenida que, com as novas luzes, parecia que era dia, de tão iluminada.
Ocorreu que, muito entretido no jogo, embora olhasse de vez em quando, não percebi quando meu pai apontou na esquina, antes da ponte que interligava as duas pistas. E não adiantava me esconder porque ele já tinha me visto. Então, escabreado, trêmulo, e com o coração acelerado temendo o pior, saí logo do jogo indo ao seu encontro. Por ser alfaiate, ele deixava duas ou três unhas das mãos um pouco maiores, para facilitar, sem se furar, a tarefa de costurar ou alinhavar, usando a linha, o dedal e a agulha.
E era com essas unhas grandes que ele as apertava numa das minhas orelhas (cuja dor fina ia do meu coração à minha alma), me trazendo assim, até dentro de casa. E passava sem olhar nem se importar com a presença de minha mãe nem com quem ela estivesse no terreiro. Já dentro de casa, enraivado, colérico, antes de me surrar no meio da sala com o seu cinturão, reclamava muito comigo, que tinha de lhe prometer não mais desobedecer as suas ordens. Além disso, ficava de castigo muitos dias, sem sair pra brincar fora de casaE me alertava, ai de mim, se ele me pegasse de novo jogando bola na avenida!...
Meu pai era rigoroso pra criar os filhos. Tinha uma forma de criar repressora. Reclamava, batia, castigava, não admitia desobediência dos filhos. Dos três filhos, eu (o filho mais velho) era o mais teimoso, por isso apanhei tanto. E apanhava porque deixava de cumprir as obrigações de estudo, de pegar o pão na padaria, de fazer algum mandado pra ele, de ficar um certo tempo na alfaiataria enquanto ele resolvia alguns compromissos na cidade, enfim, apanhava dele, porque não cumpria com os meus deveres, só pra ter tempo de sobra pra jogar bola.
Mas não tenho raiva de meu pai por ter sido tão repressor. Não fiquei com traumas por ter sido criado com reclamações, surras e castigos. Meu pai quase que não teve instrução escolar, mas é um homem decente, cumpridor dos seus deveres, e soube, mesmo com o seu jeito duro, rude e violento de agir, junto com minha mãe, tão afetuosa, paciente e pacífica, bem nos criar e bem nos educar. Mesmo com as inconveniências, travessuras e desobediências infantis, eu e meus irmãos tivemos uma infância simples e feliz, protegidos, consolados e amados por nossos queridos pais.
Eu considero a infância, o momento do encanto inocente da vida humana, muito embora o espírito que habita no corpo pueril, já tenha a maturidade existencial resultante das lições de vida experimentadas em outras vidas, mas a cada nova encarnação, o espírito, por dever evolutivo, deve revelar ainda na infância do corpo físico, os bens morais que vão lhes servir de guia e modelo durante as fases carnais subsequentes, visando assim, não só o bem-estar físico finito, mas sobretudo, o bem-estar espiritual eterno.
Escritor Adilson Fontoura