A velha estrada
Tantos passam nessa estrada... O homem de todas as idades, de todos os tempos, de todas as maldades, de todas as cidades. Nela, fica a pegada invisível de cada um. Aqui passa a todo instante o apressado, o ignorante, também o sábio, o otimista, o pessimista, o alegre, o triste. São tantos, que nem dá pra citar, mas pense você mesmo, leitor, quantos e quantos passam pela estrada que cruza o país. Que tipo de pessoa pisa nos olhos dessa velha estrada acolhedora. Acolhe todos, sem perguntas, nem reclamações.
Impossível saber quem, assim como também não há como saber o motivo para cada um desses imbecis estarem correndo nessa estrada. No entanto, destacamos alguns. O primeiro que me vêm é as férias... Ah férias!!! Os escravos com alforria! ( As vezes você tem sede para escrever, e eu que pareço morar no deserto, sempre morro com essa sede insaciável. Que droga, sou poeta sem poesia, músico sem música, e maldito sem maldição ). A verdade é que eu nem queria está escrevendo essas palavras inúteis, mas já que comecei... E aposto que você também não queria está lendo essas palavras inúteis, mas já que começou...
Contudo, continuemos. Depois do escravo com alforria, por contradição, me vêm aquele que ainda é escravo, ou seja, o que morre nessa estrada à trabalho. E são muitos; caminhoneiros, motoristas de ônibus, de ambulância ( para socorrer os desesperados), o pessoal que rouba legitimamente nos pedágios, aqueles que fazem curativos na estrada, e outros, outros, tantos outros... Ah, lembrei-me; passam também os cantores com suas músicas gentis, que alegram multidões de pessoas gentis. Também passam os clubes de futebol, que também alegram multidões de pessoas felizes.
Não sei mais o que falar sobre os parasitas que germinam nessa estrada. Mas, veja você, amigo gentil, quantos e quantos passam, e ( agora entro nessa história medíocre) em meio a todos eles, passo eu! Eu que não sou nem certo e nem errado, nem trabalho e nem tenho férias, não sou sábio e nem ignorante, nem apressado, e muito menos relaxado, nem feliz e nem triste, não sou otimista e nem pessimista, nem cantor e muito menos jogador. Não sou a esperança dos fracos perdidos nas horas do dia, e nem a verdade dos que vivem à buscar certezas. Sou outro tipo de idiota, talvez do tipo consagrado pelas ações e pensamentos, pela capa do livro e carta de testamento em branco... ( Salve criatura que não existe, por isso que morre. Salve sonhos de quem não dorme, e por isso não se realizam, salve oração da noite que ninguém ouve, e salve a boa intenção de quem não pode fazer nada para se curar).
Ah, idiota ( sim, eu) que se atreve deitar no dorso dessa estrada para olhar o céu que brilha acima das emoções cruéis. Um ingrato do tipo que não agradece o frentista após ter dado um carinhoso bom dia, após a moça da lanchonete ter dado um belo café quente com uma mosca no fundo do copo. Sempre tudo é muito bonito... Sorriso mascarado pelas horas que passaram, tristeza fomentada pelas horas que virão, e a lealdade a quem me deu esses dias vazios para correr na gaiola como um rato de esgoto.
Mas quando entro no carro, é a sensação de ser livre que me sustenta e ao mesmo tempo, é a que me mata aos poucos, moendo os dedos dos meus pés e lapidando minhas asas pesadas. Mas por um minuto, é a vontade de mostrar o dedo ao outro que passa na via que me mantém consciente. Ainda assim, acho que não sou tão mau, nem tão bom. Acontece que se existe inferno, creio que lá deve haver uma parte de mim, parte essa que, não vê o sol nascer, que ultrapassa os outros carros sem se importar com as possíveis datas nas lápides. Mas também acho que se existir o céu, também deve ter a outra parte de mim sentado numa dessas nuvens de algodão. Parte essa, singela, calma, cega e próspera. Nos manicômios também deve existir um pedaço da minha criatura, nas igrejas e nos bordéis.
Por fim, você que está lendo também deve ter um pouco de tudo. Talvez sejas infiel, fiel, amável ou não, gentil, rude, ganancioso, preconceituoso, bondoso, importuno. Talvez beba muito, talvez beba pouco ( e é nisso que você peca), talvez não sejas você mesmo, talvez não ame e nem seja amado, talvez sejas um tanto quanto egocêntrico nessa estrada que te mata, te cura e te liberta. Você que veio até aqui, aproveite e cuspa nessas palavras medíocres, assim como aquele sublime verme cospe na cara da estrada, e assim como eu vomitei essas palavras. Vá, cuspa nelas!