Assim ou ...nem tanto. 97
“Quem vê caras não vê corações”
Coleccionava excelentes bebidas em garrafas vulgares. Fazia ele os rótulos no papel que houvesse e essa era a razão pela qual alguns se despediam já do vidro como pele escamosa, delida a letra que tombava, optimista, para a direita. Muitas das garrafas tinham a referência pintada a cor que foi brilhante e que agora parecia empoeirada. O tempo também cansa as letras, apaga tintas, faz esquecer as senhas e torna o escrito uma conversa de loucos. Havia desenhos infantis, cercaduras gregas, triangulações que circulavam o espaço onde as letras se apertavam ou, desgarradas umas das demais, piruetavam distâncias que informavam o homem da origem do néctar catalogado. A ideia era manter secretos os seus gostos, esconder a garrafeira, preservar de gulosos o que, egoísta, queria só para si. Desviava a atenção da mulher que garantia que o marido não bebia embora tivesse por uso dormir na cave excessivas horas. Quando regressava trazia um hálito a alecrim e hortelã ou o cheiro forte a pasta de dentes que acabasse de ser engolida. Desistiu de descobrir a razão do mistério. Aguardentes, conhaques, whiskeys, licores, vinhos do Porto e da Madeira, bebidas fortes de arroz, tudo era transferido para vulgares garrafas a que apunha um rótulo com designações codificadas. Havia-as a patentear ácido sulfúrico, petróleo, raticida, veneno protector dos batatais, soro fisiológico, soluto de ferro e potássio, zircão diluído e muitas outras coisas que, anagramaticamente grafadas repeliam quem ousasse chegar perto. E veio a guerra. Quando o inimigo o forçou a tomar daquele veneno gritou com falsas dores, estrebuchou e morreu. Depois, já livre de perigo, procurou a mulher que lhe perguntou para começo de conversa: - voltaste a beber?