Apego

Olha lá... Lá tava ele de novo olhando para aquele negócio que ele vive procurando em cima das coisas, e que fazia barulho todo dia de manhã pra acordar. tava lá de novo encarando, olhando, e às vezes jogando pro lado, tipo assim, tipo lixo. Às vezes jogava pro lado e também afundava o rosto no travesseiro. Ele amava e odiava aquele telefone. Ele amava e odiava. Só pode. Tipo eu e o gato da Dona Julieta dali de baixo.

Tava de novo triste. Ele tava assim tinha uns anos...Ou dias...Nunca sei. Mas tava assim desde que aquela menina, a Yasmin, que viveu aqui uns anos...Ou dias, e que sempre trazia comida pra mim, sumiu. Ela foi embora. Eles brigaram. Ele brigou com ela, ele. Parecia até aquelas brigas que ele tem comigo, quando eu como lixo, ou quando num consegui segurar o xixi “acidentalmente”, em cima do telefone dele... Esse telefone. Sempre ele. Mas ele tá triste. Ele tá mesmo. Tá.

Eu tentava animar ele. Teve um dia que o acordei subindo na cama, beijando a orelha dele, que nem quando eu ainda era um cara pequeno sem noção da vida. Mas cadê que ele reagia? A primeira coisa foi me empurrar pro lado e pegar o tal telefone. Parecia esperar alguma coisa, uma comida, ou uma voz... Ou até que o telefone acordasse ele. Mas não parecia satisfeito. Ele queria esperar alguma coisa. Esperar sei lá o quê. Eu só esperava assim minha comida ou aquele cara que traz as coisas de papel aqui em cima.

Eu não entendia o mundo dele. Eu odiava quando ele saía, e passava anos fora...Ou dias...Ou o que eles chama de horas, nunca sei. Mas hoje ele num sai. Faz o tal de “tempo” que ele não sai. Fica ali na cama, ou no sofá... Esses dias....Esses dias tava sentado perto da janela, olhando pro distante, perdido...Tipo eu quando fico hipnotizado com aquele passarinho que vem na janela da gente beber água? Aquele bicho folgado...Odeio aquele passarinho, mas odeio mais o gato da dona Julieta. Num tem como gostar dele. Num tem mesmo. Eu até tento, somos todos da mesma turma, mas aquele gato... Num desce.

Mas eu andava preocupado preocupado com meu amigo. Ele chorava. Odiava vê-lo chorar, sabe? Chorar. Teve um dia que ele atendeu o telefone... Ele falou algumas coisas sobre voltar pra ele. Falou também sobre coisas de amor, perdão, e outras palavras que eu só ouvia naquele negócio da sala, que fica passando um monte de gente, preso naquela caixa... Até hoje num sei como cabe tanta gente lá dentro. Uma vez eu derrubei a caixa e tentei salvar um amigo meu, um outro cão, que tava preso lá dentro. Derrubei, chamei, gritei, mas ninguém saiu. Aí quando meu amigo chegou ele me deu dois tapas e gritou comigo. Acho que ele num quer que as pessoas saiam dali de dentro. Vai entender...

Acho que tudo desandou quando a tal da Yasmin se foi da casa. Ou Yaiá, como ele chamava ela, quando estavam agarradinhos olhando praquela caixa e para as pessoas lá dentro presas. Eles gostavam de ver aquelas pessoas presas. Nessa época, aqui em casa era legal. Ela me dava carinho e comida, e eu ficava ali, no meio deles, às vezes caíam biscoitos, pizza, e teve uma vez, que eles estavam bebendo alguma coisa...Beberam muito, desde uns anos atrás...Ou horas...Nunca sei... Só sei que depois disso, ela jogou comida no chão...Essa comida saiu da boca dela, tinha um gosto estranho... Mas era gostoso. Ele ficou preocupado com ela nesse dia. Mas acho que ela num queria que eu comesse mais. Foi jogar comida da boca dela lá no banheiro, no lugar onde eu bebia água quando ele num tava.

Aí, de repente, uma dia, ele deixou o telefone de lado. Ele sentou do meu lado e ficou olhando pra mim. E então, então... Então ele mostrou os dentes. Geralmente, quando ele faz isso, é porque tá feliz. Ele não tem rabo pra ficar balançando, mas ele mostra os dentes, ele. Olha, faziam anos...Horas...Ou dias, nunca sei, que ele num fazia isso. Mostrar os dentes. Mas ele mostrou. Aí ele respirou fundo, olhou pro teto, e jogou o celular pro lado. Depois ele fez aparecer algumas pessoas naquela caixa. E então alguém chegou. Senti o cheiro de longe. Era um cheiro parecido com o da Yaiá. Bateram na porta e eu corri pra tentar abrir. Mas nunca conseguia.

Foi então que outra mulher chegou. O cheiro dela era diferente, e ela já chegou mostrando os dentes. Eles se abraçaram, se beijaram, e correram pro sofá. Ele passou aquele dia inteiro mostrando os dentes pra ela e beijando ela. Eles queriam achar alguma coisa dentro da boca um do outro. Era o tempo todo ele com a língua na boca dela e ela com a língua na boca dele. Eu achei graça. Fiquei olhando para eles. Aí eles ficaram sem graça, eu acho. Foram pro quarto. Mas ele tava feliz, e eu estava feliz com ele. E percebi.

Eu percebi que essas pessoas precisavam umas das outras para mostrar os dentes que, na verdade, eles vivem melhor quando mostram os dentes para outras pessoas. Eles precisam de outras pessoas... Ah, e de telefones, eles precisam de telefones. Isso é óbvio. Mas acima de todas as coisas, ele precisam desse apego. De estarem próximos. E...E...E... ele estava feliz. Yaiá nunca mais voltou! Alguns anos depois, a menina... Ah! Ana o nome dela. O nome dela era Ana... Alguns anos, dias, ou horas depois, nunca sei... Ana veio morar com a gente, e depois, nasceu uma versão menor deles. Um bebê! Não sei se tinha a ver, mas eu tentava falar pra ela que a barriga dela estava crescendo, que ia explodir, mas ela nem ligava. Os dois ficavam alisando a barriga e tal... Mas de repente, quando o bebê apareceu, a barriga se foi... Muito esquisito o mundo deles. Mas eu acho incrível. Eu hoje tô velho. O bebê virou meu amigo. E espero que isso tudo aqui dure horas... Ou anos...ou dias...Nunca sei.

Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 18/06/2017
Reeditado em 18/06/2017
Código do texto: T6030914
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