Adria Santos - atleta

Parapan
Ficar bem na foto ou cair a ficha?

Amanhã são inaugurados o Jogos Parapan-americanos 2007, aqui no Rio de Janeiro.
 
Estive muito alheia aos jogos tradicionais do Pan por motivo de trabalho, apesar de estar bem pertinho de tudo, mas sabia pelas notícias e outdoors que o Parapan ia começar.
 
Observo que o povo nem de perto está motivado para eles. Antes, as ruas estavam enfeitadas e as pessoas combinavam para assistir em grupo as competições. Temo que, mais uma vez, estes jogos serão apenas comentados nos rodapés dos jornais e nos minutos restantes dos telejornais.
 
Bem perto de meu consultório há um enorme cartaz de uma atleta brasileira cega (a fundista Ádria Rocha Santos). Eu vou confessar o segundo que me passou na cabeça, quando eu a vi pela primeira vez: ”Ela nem pode saber se saiu direito na foto...”.
 
É isso aí. Ela não sabe se veste a melhor cor de roupa ou como é sua aparência, mas corre o que eu nunca vou correr; ela sente o tempo, os movimentos e tudo à sua volta melhor do que eu, mesmo que eu esteja com os olhos bem abertos.
 
Como ela, todos os outros atletas, para mim, são mais do que atletas. Eles não só se adaptaram à sua “deficiente” condição, como também, se superaram e fizeram com que a sua limitação fosse uma nova forma de viver. Estes atletas simbolizam a razão da continuidade da vida. São vencedores, mesmo antes de competirem, e são heróis de batalhas diárias, silenciosas, das quais ninguém participa. Se ganham, aparecem na mídia por um tempo e depois voltam aos seus treinos, esquecidos e muito mal apoiados financeiramente.
 
Soube recentemente que há até vôlei de pessoas amputadas – acho que só das pernas... Eles jogam no chão, sentados. E também soube que existe futebol de cegos! Meus Deus! Eu não acerto dentro daquela baliza nem que caia um raio em mim.

Isso me lembrou a minha prima, ex-treinadora de futebol de crianças e adolescentes. De vez em quando ela colocava uns garotos com problemas de entendimento ou, mesmo, deficientes mentais para jogarem com os outros meninos. Os garotos do time adoravam e participavam de acordo com os meninos doentes, só para verem a satisfação dos moleques e festejavam quando um acertava o gol.
 
Um dia de partida perdida? Talvez... mas, quanto todos aprenderam com isso? A minha prima não pensava assim! Ela acreditava piamente que estes meninos podiam dar tudo de si e jogar como a turma toda. Se ela não confiasse neles, eles não estariam confiantes.
 
Eu fiz o parto dos dois filhos de Andrea Salgado, que perdeu as pernas num acidente no mar, há alguns anos atrás quando uma hélice de um barco passou por ela, dentro da água. Seu acidente ficou “famoso” por ter acontecido numa praia famosa. Talvez o destino, sei lá...
 
Ela até se candidatou ano passado, mas nada ganhou. Luta pelos deficientes e faz trabalhos voluntários, além de ter alguma atividade através da Prefeitura e em eventos e palestras.
 
O julgamento para a condenação dos culpados e a justa indenização ainda não saíram do papel. Ela é de classe média e passa por todas as dificuldades financeiras que qualquer brasileiro passa. A única diferença é que ela é limitada no seu direito de “ir e vir”, mesmo que digam ao contrário.
 
Sua fisioterapia é extremamente cansativa, a fim de que consiga se equilibrar nas próteses e exercitar os músculos que movimentam as pernas mecânicas. Como ela tem que trabalhar para sobreviver e "sobreviver" ao seu destino, acaba não lhe sobrando tempo para fazer todos os exercícios, o que a leva a adquirir um arqueamento das pernas, por atrofia muscular.
 
De vez em quando dizem que ela ainda não deixou "cair a ficha" e que ela, um dia, vai sentir o drama que a acompanha. Ela SABE e VIVE o drama que a acompanha todos os dias, desde a hora que acorda até a hora de dormir, o que não a impede de ter uma visão otimista de seu futuro e de seu lugar na sociedade.
 
Eu posso confirmar, mais do que ninguém, o quanto esta moça sempre foi corajosa e positiva, bem antes do acidente:
 
Um dia, durante seu trabalho de parto, algo deu errado e seu bebê não nascia. Tive, na última hora, que fazer uma cesareana – era só aumentar a dose de anestesia peridural, que já estava sendo administrada por um cateter. Quando eu já estava com o bisturi na mão, o anestesista disse que ela estava tendo uma convulsão. Não dava tempo pra saber o que acontecia – podia ser qualquer coisa. Tive que retirar o bebê em poucos minutos para, ao menos, salvar a vida dele. Na hora, já que tudo corria muito bem, imaginei ser um aneurisma cerebral ou coisa do estilo.
 
Depois do parto e já estabilizada e totalmente sedada, ela foi internada no CTI . Ela não lembrava de nada depois que acordou, apenas que em algum momento ela disse que não agüentava mais fazer força para o bebê nascer e eu decidi operar.
 
De manhã bem cedinho, o plantonista me ligou para dizer que ela TINHA que sair do CTI o mais rápido possível, pois estava fazendo a maior zona com os médicos - queria tomar café, amamentar, blá, blá, blá... Ela atrapalhava mais a equipe médica do que propriamente os outros doentes, porque a maioria (ou todos)estavam em coma.
 
Quando eu cheguei para a visitar, ela estava sentadinha na cama, com as pernas cruzadas e rindo: “Como é? Quando é que eu vou sair daqui, cara?”.
 
Perguntei se ela queria que eu explicasse o que tinha acontecido (foi uma irritação da meninge pela própria medicação anestésica), mas ela não estava nem aí e em nenhum momento duvidou sobre minha intervenção como médica, muito menos de minha equipe. Aliás, se não fossem eles, ela poderia ter ido embora naquele dia. Ela só queria tomar banho, comer e amamentar!
 
Depois deste parto ela teve mais um filho e correu tudo direitinho. Fiquei impressionada com a sua confiança em mim e o total desinteresse para saber melhor qual a razão de tudo pelo que passou. Já naquela época ela era uma camaleoa e se adaptava rapidamente às surpresas.
 
Depois que Andréa perdeu as pernas eu tive alguns contatos com ela, a maioria por telefone. Mas, dois momentos ficaram marcados:
 
O primeiro foi na rua, enquanto ela levava os filhos para a escola. Ela já testava as pernas mecânicas e aparecia na TV. Só que naquele dia eu a vi na rua na cadeira de rodas e com um olhar baixo, triste.
 
A adaptação do corpo e o teste para a melhor prótese que o sustente é uma coisa difícil e, por vezes, muito dolorosa. Ela quase chorava porque estava com feridas no coto das coxas devido ao atrito das próteses na pele.
 
A outra ocasião foi numa consulta de rotina, quando a vi saltar como uma bailarina da sua cadeira para a mesa de exame. Ela se orgulhava de fazer tudo sozinha. Tive o maior prazer de a levar até o táxi, enfrentando os obstáculos das calçadas e esquinas, que não estão preparadas para receber os deficientes.
 
Muito papo rolou conosco e pude ver de perto a sua luta. Hoje ela está bem melhor fisicamente e, inclusive, está participando dos eventos do Parapan.
 
Procurarei estar a par de sua vida e da programação dos jogos, que, para mim, têm mais importância do que o Pan.
 
As pessoas que sofrem um acidente desse tipo ou perdem a visão (ou mesmo a fala, a audição ou qualquer tipo de doença limitante), precisam ser atletas da vida. Treinam a vida toda e vencem a cada dia um desafio. Sobra para estas pessoas a alegria em continuar vivas e terem todos os direitos e prazeres de qualquer ser humano. Estas pessoas devem ser consideradas mais do que cidadãos, mas um exemplo para aqueles que possuem todos os seus sentidos e sua integridade física.
 
Acabei de falar com Andrea e ela me deu autorização para publicar este texto. Amanhã ela vai estar lá na abertura do Parapan e eu vou estar aplaudindo.

Leila Marinho Lage
Rio, 12 de agosto de 2007 
Para saberem mais sobre os jogos do Parapan acessem:
http://www.rio.rj.gov.brhttp://www.rio.rj.gov.br/

Leila Marinho Lage
Enviado por Leila Marinho Lage em 11/08/2007
Reeditado em 21/02/2009
Código do texto: T603091
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