Somos todos passageiros
Todos os dias, tudo pode acontecer em uma simples viagem de ônibus. Inclusive nada.
É com essa frase na cabeça que embarco no ônibus logo cedo, rumo ao hospital do Servidor Público. O local de embarque até o destino final não é longo: são cerca de 15 km e o trajeto é composto por vias importantes e movimentadas que ligam a periferia à zona central da cidade: Estrada do M’Boi Mirim, Largo 13 de Maio, Avenida Adolfo Pinheiro, Avenida Vereador José Diniz, Avenida Ibirapuera, Rua Borges Lagoa. É mais fácil chegar ao litoral do que ao centro da cidade, penso eu.
A linha 675-K, que liga o Terminal Jardim Ângela ao Shopping Metrô Santa Cruz, transporta cerca de 36 mil passageiros por dia, aproximadamente um milhão de passageiros por mês, segundo dados da SPtrans. Não seria equívoco nenhum chamar a linha de Metrô sobre rodas: a quantidade de passageiros supera algumas estações da Linha-5 Lilás do Metrô, como Campo Limpo, Vila das Belezas e Adolfo Pinheiro. Impossível sentir solidão com tamanho aperto.
Sobe e desce constante de passageiros. Congestionamento. Som caótico de buzinas de motoqueiros que transitam pelos corredores, desafiando a lógica do tempo e da falta de responsabilidade de alguns motoristas, que mudam de faixa sem dar a devida sinalização. Não se pode generalizar, mas o trânsito de São Paulo é um dos mais violentos do mundo.
Com o elevado número de passageiros, é evidente que há muitas histórias a serem contadas durante as viagens. Um milhão de histórias, pra ser mais objetivo. Talvez assuste o leitor e o desestimule a ler um texto tão longo assim.
São anônimos, ainda que tenham identidade, emprego, família: ali, nos 27 metros de cumprimento do ônibus biarticulado, são todos passageiros. Estudantes, empregadas domésticas, secretárias, advogados, contadores, bancários, não importa a profissão. Estão todos em condição de igualdade, espremidos pela turba que avança vorazmente para as portas em cada ponto de parada.
Privilegiados são os que acordam mais cedo e enfrentam as filas nos Terminais para irem sentados. Além de garantirem certo conforto, podem recuperar algumas horas de sono atrasado que têm já na segunda-feira, primeiro dia útil da semana para a grande maioria. Dessas pessoas, uma jovem dorme com um caderno repleto de anotações sobre o colo. Provavelmente estudava para a prova que terá à noite na faculdade, mas fora vencida por Morpheus e sonha com o professor durante uma das aulas explicando um tema complexo.
Outras pessoas estão mudas, olhos grudados nas telas de celulares cada vez maiores e mais sofisticados, os dedos ágeis se deslocando no ar em uma velocidade incrível. Um jovem desliza o dedo sobre a tela, buscando alguma novidade em uma famosa rede social. Descontente como que (não) vê, guarda o celular no bolso da mochila e põe-se a pensar na vida. Dois, três minutos depois, porém, torna a pegar o celular e a repetir mecanicamente o gesto de repassar o dedo sobre a tela e reiniciar o processo de busca.
De repente, um grito rompe o silêncio e quebra a rotina de todos. Uma senhora, na faixa dos 50 anos, gesticula energicamente e profere nomes impublicáveis, ofendendo as mães do cobrador e do condutor do veículo: o sinal para desembarque ou não fora ouvido ou fora dado muito próximo ao ponto, fato que resultou no ato intempestivo da mulher. Uma passageira próxima a porta defende o motorista e cita Raul Seixas, o que chama a atenção de todos: "é sempre mais fácil achar que a culpa é do outro".
Acho que a rotina de congestionamentos, os ônibus lotados e as viagens demoradas acabam contribuindo para o embrutecimento dos passageiros. Na disputa por espaço, é comum surgirem alguns desentendimentos. Certa vez, um jovem estava pouco depois da catraca e avançar ou regredir era uma tarefa impossível. Eis que um senhor resmungou: “o ônibus tem duas catracas e o povo não sai do lugar”. Automaticamente, o jovem respondeu que o ônibus poderia ter dez catracas que o problema não seria resolvido: a lotação impedia qualquer movimento, conforme estabelece a Lei da Física: “dois corpos não ocupam o mesmo espaço”.
Ao longo de quase 70% do trajeto, os passageiros podem visualizar pela janela a lentidão da obra de estações do Metrô da Linha-5 Lilás, prometidas para 2015. Aliás, os principais jornais da cidade destacaram recentemente que há uma nova promessa até o final de 2017, sendo que três dessas estações serão entregues em julho. Do jeito que a coisa está, porém, melhor sermos realistas e acreditarmos em nós mesmos e em nossa resiliência. A leitura desse texto explicará melhor o que quero dizer ( http://www.metrocptm.com.br/porque-nao-podemos-esperar-pelas-novas-estacoes-da-linha-5-lilas-em-2017/ ).
Próximo ao Shopping Ibirapuera, um alvoroço: um celular havia sido furtado. Segundo a ex-proprietária, há poucos minutos havia utilizado o aparelho e o colocara na bolsa, que ficou aberta. Quando se lembrou de que precisava ligar para a patroa foi que percebeu o furto. Não é difícil pressupor que o delito não entrará para os dados estatísticos da polícia: o tempo médio de quatro horas para fazer um boletim faz com que muitas pessoas não procurem uma delegacia para registrar a ocorrência. Enquanto isso, os “gatunos” agem impunemente, à espera de uma oportunidade, de apenas um vacilo.
Volto meu olhar para o Shopping e uma grata surpresa: nos fios de alta tensão, um pássaro observa calmamente o vai-e-vém frenético de pessoas, autos, motos, ônibus, bicicletas. Por alguns segundos, creio que ele (o pássaro) direcionou o olhar para mim e me recomendou: “dê asas às palavras e relate tudo isso”. Bobagem, penso eu. Quem vai se interessar em saber as histórias que cotidianamente ocorrem nas viagens de ônibus pela cidade de São Paulo?
Um pouco mais a frente, chego ao meu destino final. A viagem de volta não promete tanta emoção, mas uma coisa é certa: tudo pode acontecer em uma simples viagem de ônibus. Inclusive nada. Depende dos olhos de quem vê.