A esperança como concepção de mundo.
Assim como Brecht nos alertou que "a cadela do fascismo está sempre no cio", creio que o abismo da barbárie está sempre a poucos passos. Sou otimista em relação ao futuro, porque, tal como Sartre no prefácio de "Os condenados da Terra" de Franz Fanon, assumo que é preciso dizer que o mundo de hoje é horrível, mas que a esperança sempre foi e continuará sendo minha concepção de futuro. É evidente que com a tecnociência colonial, pós-colonial e contemporânea, sobretudo a partir das revoluções industriais e da conformação liberal e neoliberal do Estado-nação principalmente no último século, a base material da vida humana alcançou um nível de inovação tecnológica e desenvolvimento técnico que tornou o cotidiano mais confortável, suportável e menos hostil do que fora outrora, e em alguns casos, mesmo hedonista e hiper-prazeroso. Com os avanços no Direito do Trabalho, na Urbanização, na Economia, na passagem do XIX para o XX, os operários e trabalhadores em geral passaram a ter uma dieta balanceada, com duas ou três refeições ao dia, além de melhores condições de habitação - e, também, por conta de alguns avanções nas ciências da saúde - enfim, a mortalidade infantil caiu em quase todo mundo e a expectativa de vida aumentou e tivemos uma explosão demográfica. Aparentemente, portanto, o mundo de hoje é muito melhor, aos olhos apressados e incautos, que o mundo de ontem. Mas em contrapartida, se o mundo é mais confortável, também é mais perigoso, sórdido, injusto e vulgar. Primeiro, há uma degradação espiritual do que entendemos por civilização, cultura, educação, ciência, arte, universidade. A mentalidade utilitarista que só busca o lucro, por exemplo, gera uma crise sem precedentes da universidade e da educação de um modo geral, como denunciam pensadores como Nuccio Ordine e Nussbaum. As artes, desde a Escola de Frankfurt podemos vê-lo, se tornaram um mercado rentável e vulgar, em que o entreterimento fugaz e o prazer efêmero são predominantes. A respeito disso nos fala Vargas Llosa em "A Civilização do Espetáculo". O Sumo Pontífice da Igreja Católica, Jorge Mario Bergoglio, condena, em diversos textos oficiais, a "cultura do descartável" de cujo deus é o dinheiro. Além disso, as crises ambientais macro ou microclimáticas, globais ou regionais, demonstram o quanto nosso estilo de vida é predatório e insustentável. Na agricultura, diariamente ingerimos os mais variados e complexos venenos, além de endossarmos uma conformação do agronegócio que detém o monopólio sobre as sementes do mundo, deixando os pequenos produtores em situação precária. E se acreditamos que o problema nuclear acabou pois a Guerra Fria é uma lenda do passado, é preciso lembrar que desde então o mundo não deixou de aumentar o paiol atômico, e que hoje dormimos sobre um arsenal de morte capaz de destruir o planeta algumas vezes, gerando, como bem o lembrou Gabriel Garcia Marquez, um Cataclismo de Dâmocles. No plano político, estamos observando a vivificação dos instintos mais baixos e da violência moral mais vil. Por toda parte, na Áustria do neonazismo aos Estados Unidos de Trump, no Brasil da polarização raivosa entre coxinhas e mortadelas e dos cartazes pedindo a volta da ditadura, a cadela do fascismo late raivosa, a espreita, nos estertores do mundo, sedenta por corroer, uma vez mais, as visceras da democracia. A classe média, assistindo impávida, encara o descalabro com uma naturalidade constrangedora, e reproduz o circo de horrores de modo angustiante. Em todos os campos da atividade humana a moral de rebanho adota os valores predominantes do capitalismo voraz, e o egoísmo, a ambição sem medidas, faz com que a beleza da vida seja reduzida à malícia atroz de uma corrida do ouro. Sim, a base material evoluiu e o mundo é mais confortável do que nunca - mas para quem? Economistas vencedores do Nobel, como Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Paul Krugman apontam que nunca a riqueza mundial esteve tão concentrada nas mãos de tão poucas famílias e que o capital acumulado por 1% da população do mundo representa uma fatia imensa do quantum total. O mundo realmente nunca foi tão rico, e a riqueza nunca esteve tão monopolizada. É o império da desigualdade, aquilo que Milton Santos chamava de "Globalização como perversidade". O cidadão não é mais o citadino, o membro da polis, portanto o político, mas o consumidor, é o que nos diz Nestor Garcia Canclini. No Brasil o lulopetismo caiu nesse conto de fadas às avessas e reproduziu essa narrativa neoliberal (mesmo como partido dito de esquerda), pois a nova classe média criada não passa de nova classe consumidora. Logo, a sensação é de redução da pobreza, pois cada qual pode ter um celular de ponta, uma tv de led, produtos e mais produtos. Tudo não passa da velha lógica fordista, em que cada um pode ter um carro, desde que seja um Ford... Mas e educação, saúde, segurança, saneamento básico? O dinheiro que compra o celular novo têm comprado essas coisas também? Com a tv nova e a roupa de marca, o cidadão-consumidor terá comprado a sua cidadania e parcelado-a em 12x sem juros? Esses produtos e serviços são apenas as migalhas do sistema neoliberal, nada mais. Ao rebanho é dado ter seus brinquedinhos para que não ocorra uma orwelliana "revolta dos bichos". É assim que somos tratados, e nisso reside nossa estratégica importância: somos homos consumus. É a servidão moderna. É preciso resistir, pois, por toda parte a vulgaridade, o utilitarismo, e os riscos práticos gerados por nosso próprio estilo de vida nos assombram. Vejo um futuro melhor, pois acredito nas forças criativas humanas e em um novo Renascimento, mas hoje, ouço latidos de uma cadela enlouquecida, e pressinto o abismo da barbárie...