Meu adeus
               a Rachel de Queiroz



     Minha mãe era fã da Rachel de Queiroz. E de tanto ouvir a velha falar na querida escritora alencarina, cedo da Rachel me afeiçoei. Lia todas as crônicas que ela publicava, na última página de O Cruzeiro
     Acompanhei Rachel na poderosa revista do doutor Assis Chateaubriand até 1975, quando, para espanto dos seus milhares de leitores, O Cruzeiro desapareceu das bancas.
     Por enquanto, nenhuma outra revista superou O Cruzeiro em credibilidade, simpatia e prestígio. A revista do doutor Chatô tinha uma feição gráfica interessante e avançada para sua época. 
      E tinha como colaboradores jornalistas, cronistas, repórteres e escritores de peso como: David Nasser, Stanislaw Ponte Preta, Henrique Pongetti, Nelson Rodrigues, Edmar Morel, Gilberto Freyre, Hélio e Millôr Fernandes e o bravo jornalista Carlos Lacerda. 
   Para as grandes reportagens, O Cruzeiro contava com os fotógrafos Jean Manzon e Gervásio Batista, excelentes profissionais.
   Como deliciosa atração, a revista trazia, na sua página de humor, o Amigo da onça,  um boneco feio, emérito gozador, criação do cartunista pernambucano Péricles Maranhão.

     Mas para falar a verdade, só quando deixei o seminário, passei a ler Rachel com  assiduidade. O clero do Ceará - no meu tempo de seminarista obediente a uma Igreja excessivamente conservadora -, não a olhava com bons olhos.
     Os padres encaravam-na como uma escritora comunista. A Mitra cearense não conseguia absorver e muito menos absolver uma jornalista oriunda de O Ceará, um jornal ateu e anticlerical.
     Uma folha, que, enquanto circulou, bateu forte nos três venerandos prelados do Estado do Ceará: Dom  Manoel, bispo de Fortaleza; Dom Quintino, bispo do Crato; e Dom José Tupinambá, bispo de Sobral.
    Para xingá-los, O Ceará  adotava este slogan: "Manoel, Quintino e José não são bispos, são bispotes" - No pai dos burros, bispote significa penico.

     Bobagem pura. Rachel rompeu cedo com o Partidão. Os motivos do rompimento ela os expõe, com muita clareza, no livroTantos Anos, que escreveu com sua irmã, Maria Luíza de Queiroz, contando parte, ou boa parte de sua vida.
     Tantos Anos não é, segundo ela, um livro de memórias.  Rachel dizia não concordar em escrevê-las.  E justificava: "Nunca pretendi escrever memória nenhuma. É um gênero literário - será literário mesmo? - onde o autor se coloca abertamente como personagem principal e, quer esteja falando bem de si, quer confessando maldades, está em verdade dando largas às pretensões do seu ego - grande figura humana ou grande vilã."
     Em tom irônico, ressaltava: "....há coisas na vida de cada um que não se contam. Eu, por exemplo, nem às paredes do quarto as contaria, como diz o fado." 
     Rachelzinha: permitam-me que assim a trate para demonstrar, neste meu adeus, todo o carinho que tive por ela. Também assim ela era chamada por seus melhores amigos. Como o saudoso beneditino Marcus Barbosa, escritor, poeta e seu colega de Academia, no artigo que escreveu, comemorando os 80 anos da  romancista de Maria Moura.
     Eu, menino, morava na cidade do Iguatu, no alto sertão do Ceará. Quando, no tempo das marias-fumaças, eu ia pra Fortaleza, entre a estação do Junco e de Quixadá, do trem eu avistava a sede de uma fazenda chamada Não Me Deixes.
     E minha mãe, que sempre me acompanhava naquelas cansativas viagens, escancarando a janela do nosso vagão, dizia-me, vaidosa: - "Ali mora a Rachel de Queiroz. Aquela que escreveu um romance chamado O Quinze." E completava: "A história de uma seca que eu vivi intensamente. Eu tinha nove anos."
     Guardo O Quinze  e quase todas as suas crônicas na minha estante predileta. Um jeito que encontrei de continuar na companhia da  Rachel, que hoje - 4.11.2003 - nos deixou...

                        






    

          

      
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 10/08/2007
Reeditado em 11/03/2020
Código do texto: T601828
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