'GOTAS' DO MAR MINEIRO DE J.G. ROSA-PARTE V
Dois fragmentos da novela UMA ESTÓRIA DE AMOR:
O TEXTO
1---“Ia haver festas. Naquele lugar - nem fazenda, (...) Com tanto sol, e conserva vestido o estreito jaleco, cor de onça parda. Se esquecia.” - In CORPO DE BAILE, RJ, p.107, 1977.
FORMA ORIGINAL DA ESCRITA - não o tema /sertões, veredas no cerrado, espinhos do agreste, vaquejadas, aboios, querências da hinterlândia (interior, sertão), amores... --- ele, com ou sem poesia? --- e sim a linguagem de prosa, originalidade de JGR . Ortografia própria, sem exageros de acentuação de homógrafos e uso do trema; pontuação (traço característico de sua forma) e ortografia únicas, particulares.
SINTAXE - No certo, frase em ordem direta - sujeito/predicado/complementos - ou indireta, não separando por ponto os adjuntos que completam o sentido da frase.
Mas... ah... em ROSA!
“Ia haver festas. Naquele lugar.........”
PONTUAÇÃO - Descrição da capela em frase sincopada: “Benzia-se a capela - templozinho, nem mais que uma altura espiã, de onde a vista se produzia..Uma ermida, com paredões de taipa-de-sebe (...) Nem um sino. (...) uma Nossa Senhora feia”. Autor não faz muita distinção entre vírgula e ponto-e-vírgula - pausa respiratória, mais importante que a função sintática. “Chifres de bois, dos bruxos, como vasos de flores; estampas; bandeirolas recortadas”.
MORFOLOGIA - sabor novo das velhas palavras, ‘dança’ espantosa de arcaísmos e neologismos.
1-“nem fazenda, só um reposto, um currais de gado” - reposto como substantivo e não flexão verbal, sentido de ‘repostaria’, ou seja, parte da casa destinada à feitura de doces e licores ou para guardar móveis e hospedar a criadagem, ou seja, pousada;
2-“um currais-de-gado” - discordância numérica: singular ou plural? - próprio da língua sertaneja;
3-“engenho-de-pau moendo” (som alternado) - engenhoca de cana (som contínuo como um ronco); também monjolo, que pila ou mói o cereal;
4-“a capela (...) a dois quilômetros da Casa, no fim de uma altura espiã” - altura significa atalaia, ponto alto do morro; espiã, quem espia (nesse contexto?); esplanada, sentido de planalto e no Nordeste, torre de vigia - justificação etimológica da adaptação do autor: no latim, ‘ex planum’ - “espiã”, como adjetivo, significaria ampla e plana;
5-“paredes de taipa-de-sebe” - parede feita de varas trançadas e adobe;
6-“tendo à testa a cruz” - cruz no tope central da fachada, que é a testa da ermida;
7-“A imagem do altar sorria sem tamanho e desjeitada.” - não desmensuradamente, mas sem jeito adjetivo ‘desajeitada’, síncope de ‘a’ bem comum na fala sertaneja;
8-“Manuelzão, ali perante, vigiava” - adjetivo originariamente advérbio, significa postado, em frente, ou dominante, imperante.
O AUTOR - Não se pode compreender uma obra literária sem conhecer o autor - temperamento, formação, profissão, família, núcleo social, escola, influências recebidas. Ele? Médico, diplomata, fazendeiro, ‘parisiense’ uns tempos, um dos maiores escritores de sua época, livros traduzidos em vários idiomas.
JGR - estilo inusitado, riqueza vocabular, busca de novas formas, enredo comum virado em criação surpresa...
Sobre ele, TRSTÃO DE ATAÍDE num rodapé de jornal: “...escritor absolutamente singular )...) em toda a história da nossa literatura (...) tomou da matéria plástica Brasil em suas mãos de bruxo, tanto paisagem como gente e linguagem (...) imagem de nossa cultura absolutamente inédita”. Fabulista brincalhão, um aedo de prosa, jogral versátil de muitas andanças e do nosso folclore..
Em 1952 /tinha 44 anos/, na revista “O Cruzeiro”, aparecia vestido de vaqueiro - chapéu de palha sertanejo, debrum revirado, blusão de couro -, no entremeio de muitas léguas, conduzindo uma boiada, farnel de couro, azêmola bem ajaezada, um sorriso para o fotógrafo... e a posteridade.
O TEXTO
2---“Sertão. O sertão era bonito. O céu subia mais ostentoso, (...) E gabar mais os sofridos - que de si já eram tantos.” - In CORPO DE BAILE, RJ, p.125-125, 1977.
PERSONAGEM - gradativa adaptação - “Manuelzão nos usos deles já se ajeitava”.
ESPAÇO ou LUGAR - Situando o leitor na paisagem, um único substantivo, “Sertão” acompanhado de ponto. A seguir, “O lugar era bonito” + descrições, em visão que cobre vasta área de céu e terra: “O céu subia mais ostentoso, mais avistado do que na Mata do Oeste, azuloso........” Vivência sertaneja - o gado.
PESSOAS - Breve afirmação inicial sem verbo: “E a gente, bom povo.” Logo depois, caracterização através do traço fundamental do homem, que é a linguagem: “Falavam limpo duro.” Comportamento de “Povo alegre, ressecado.”
LINGUAJAR TÍPICO, isto é, local, “daqueles dali” - “desamanhã é dia-de-terça”, “esbarrar” (em vez de parar) “acolá em cima”, “p’r’acoli” (em vez de na frente, para trás ou adiante de lado).........
COMPORTAMENTO DO POVO - “Estimavam por demais o nhambu, pássaro que tratavam com todo carinho, que diziam assim: ‘a nhambuzinha’... Gente de boa razão, seja com o chapéu-de-couro seja com chapéu-de-seda de buriti - eles não se importavam muito com as maldades do tempo”.
SÍNTESE FINAL - expressão “Mundo grande!” após descrição do lugar (aspectos da paisagem física) e da gente local (caracterização psicológica das pessoas apresentadas).
INTERPRETAÇÃO
1-Geograficamente, um lugar do sertão, por todas as descrições da região.
2-O personagem Manuelzão, antes meio caipira e deslocado, já se sentia adaptado ao local e às pessoas, sentia-se até admirado, e gostava de saber do mundo através das estórias que os viajantes vinham contar, mesmo quando tinham necessidade de inventar a devoção de uma mentira.
3-No texto, céu (com minúscula), abóbada celeste, diferença de sentido de Céu (com maiúscula), morada de Deus e dos Anjos, o Paraíso.
4-“E o pasto reinava bom” - figura de linguagem, prosopopéia, animização; palavra ‘bom’ em dimensão metafórica: personificação ou antropomorfização de pasto.
5-Condições do gado na região: excelente - “o gado aqui estava mais gordo do que no Maquiné; porque os fracos, mesmo, morriam logo.”
6-“O frio se engrossava bom, fazia para a saúde” - frio agradável, mesmo quando intenso.
7-Característica da gente do lugar - “E a gente, bom povo. Não falavam mole, (...) Falavam limpo duro. (...) Povo alegre, ressecado.”
8-O que se destacava no povo dali - o linguajar.
9-“Não falavam mole” - ‘mole’, adjetivo em função de advérbio = molemente.
10-Vocabulário - azinhavre - hidrocarboneto de cobre, de cor verde, que se forma nos objetos daquele metal expostos ao ar e à umidade / buriti - espécie de palmeira, também chamado muriti, muruti e muritim / capiau - caipira, matuto / linguajar - modo de falar, linguagem .
11-Diferença entre chapéu-de-couro X chapéu-de-seda de buriti - nível social.
12-Expressões - “aquele poder de gente” - grande número de pessoas”; “gabar mais os sofridos” - falar mais dos sofrimentos, valorizando.
CONTEXTO / ESCRITORES REGIONALISTAS num sentido geraL - três aspectos: a--forma linguística - sintaxe e semântica - dialeto brasileiro, fortes inspirações locais, criações neológicas ou ressurreição de palavras arcaicas, isto é, não mais correntes; -- b-maximização de aspectos telúricos, seja poesia ou prosa, o homem preso à influência do meio físico e social; -- c-ênfase em certas características locais, escolha do tema e personagens; -- d-busca de uma sintaxe brasileira (variações pronominais: “Me dê um beijo...” “Te contei?”) --- NO CONTO, “Se esquecia.” -- substituição do infinitivo preposicionado pela forma gerundiva --- “um currais-de-gado”, alteração da concordância formal , substituída pela ideológica, “um (trato de terra onde estão os currais de gado”; -- 6-maior preocupação com a melodia, a musicalidade da frase ---NO CONTO, versos brancos, ritmo de redondilha maior, menor, decassílabo ou 6 ou 4 sílabas: “Chifres dos bois, dos bruxos” ... “colchas de bilro de” ... / setissílabos: “A imagem do altar sorria / sem tamanho e desajeitada.” / tetrassílabos: “toalhas de crivo; / colchas de bilro / de Carinhanha”.
AFINAL, QUEM É HOJE O DONO DA LÍNGUA? Temos exportado muitos livros literários para Portugal e hoje nossa sintaxe é comum aos lusitanos, graças a telenovelas que difunde o linguajar carioca e as gírias brasileiras. Não a ‘língua brasileira’, utopia de 1922, mas temos a taça de país campeão em criatividade linguística.
FONTE:
“A prosa de João Guimarães Rosa na literatura modernista” - Revista Signum, Faculdade de Ciências e Letras de Ouro Fino - MG, ano II, n.3, dez./79.
F I M