CRÓNICA PENITENCIAL
«Metafísica da Ascensão 2017»
Quisesse eu contemplar e ver, claramente visto,
A ascensional subida às Senhoras do Monte –
Procissão do Senhor dos Aflitos, o bom Cristo
Pregado num madeiro, subindo o horizonte…
Não sei se minha crónica tal aguentaria
Sem me deixar tentar por traços de fantasia!
Eu contemplei e vi, e ascendi estoicamente,
Pela encosta daquela montanha-mistério,
E com aquela multidão de alma penitente
Que em cada ano peregrina muito a sério:
Desde a residencial Ermida daquele Cristo
Até às santas Capelas… de secular registo.
No início, tarde clara de aura ensolarada,
Hora de noa – que já o fora no Calvário –
Na frontaria da Ermida a Cruz alevantada
Apenas esperando um orador costumário.
Chegou um pouco tarde, mas talvez nem tanto,
Que para todo o povo abriu um sermão santo.
Palavras inflamadas sobre as “cinco-chagas”,
Sobre o significado da Vida e da Cruz,
Sobre o papel da Mãe das Dores e das fragas
Que dificultam o caminho da humana luz:
Ouviu-se o canto, foi-se o sol, chegou a prece
E seis ombros pegaram o Senhor que enternece.
Aquele Senhor, Senhor dos Aflitos e afins,
Senhor das sementeiras e angústias de todos,
Tambores e bombos, escoteiros, cornetins,
Serpenteiam na estrada co´ emoções a rodos.
Está lançada a romaria e a resistência…
Olhos no céu e Cruz ao alto em penitência.
Vão romeiros da terra e de outras partes,
Diversas vidas, crentes de qualquer idade,
Novos e velhos e, à frente os estandartes
Na imagem duma fé com gesto de verdade.
Por sobre um rio de cabeças e de rostos
Sublimam-se sorrisos, lágrimas, desgostos.
Das casas e janelas surgem flores a voar,
E pendem colchas encarnadas nas varandas,
Calmas passadas sob os bombos a rufar
E as andorinhas esvoaçaram em bolandas…
Mas, eis que chega a tarde sombria e a chuva
Ameaçando a festa que estava como luva.
A encosta vai subindo. Tremulando, o andor
Pára de três em três minutos como é notório,
Que os ombros não se cansem… e que Nosso Senhor
Chegue lá bem ao Cimo com´ é obrigatório.
- Ó Senhoras do Monte, esperai, esperai,
Mas esta chuva, santas Senhoras, cai e cai!
Na última calçada os pés vão-se amaciar
Com um tapete colorido de belas flores,
Surpresa para aqueles peregrinos a cantar
Que amenizam assim as suas próprias dores.
Mas, oh, termina aqui a rua e vem o Monte
E com ele a angústia redobra em cada fronte.
O Monte das Senhoras, vestido d´ eucaliptais,
Redobra a salmodia, mas redobra a chuva
Indiferente qu' a encosta sobe e sobe mais,
E todo o céu vai chorando de curva em curva.
O Monte das Senhoras ainda está distante
Mas a fé vai-se acrescentando a cada instante.
Nas árvores se abrigam grupos forasteiros
E cada guarda-chuva abriga dois ou três
E pra juntar à chuva oferece-se aos romeiros
Garrafas d´ água, o que a todos satisfez.
E o Senhor dos Aflitos terá exclamado:
“Pai, à vista do que vês, tudo está consumado”!
Já se vêem as Capelas por entre a neblina,
Parecem dois fantasmas de dedo acusador,
E a alma dos romeiros com fé diamantina
Envolve-se em prazer e sublima toda a dor.
Chegou, por fim, ao Cimo a longa procissão
E co´ esta Santa Cruz deflagra a devoção!
O Senhor dos Aflitos dizem que, ao ver
Ali aquelas santas e formosas Senhoras,
Esquece as Suas dores suspirando de prazer
Não s´ importando d´ ali ficar eternas horas.
Mas, porém, há que regressar ao Santo Lar
Mesmo que a chuva persista em continuar…
No alto, em toda a volta, há carros e polícias,
Na primacial capela já nem cabe um ai.
Há bolsas de promessas e bancas de delícias
E na louca tentação todo o romeiro cai:
Em cada banca roscas, cavacas e rosquilhos
Mais vale eu ir andando pra evitar sarilhos…
Assim termino esta sagrada narração
Sem, todavia, deixar de tecer um voto
E uma promessa de que é minha intenção
Voltar a esta romaria em que sou devoto.
Louvo este meu Senhor dos Aflitos plural
Com esta minha Crónica Penitencial!
Frassino Machado
In ODISSEIA DA ALMA