Fraqueza e Vergonha

Era o início dos anos dourados. Um ano antes, em 1954, a cidadezinha de Arcoverde, meu Miraí, ficara comovida com o suicídio de Getúlio Vargas. Naquele tempo os políticos tinham vergonha e até, pasmem, se suicidavam quando envergonhados e desesperados. Lembro de meu pai conversando com amigos sobre a Carta Testamento e aquela frase: "Saio da vida para entrar na história". Nunca esqueci. Um ano depois, em 55, eu tinha doze anos sucedeu na nossa cidadezinha um fato que abalou a cidade e demonstrou que os homens da época possuiam o sentimento da vergonha. Isso ficou comprovado por um fato muito triste.

A nossa casa era quase vizinha a do coletor federal, que era muito amigo de meu pai, desde os tempos de criança. O cara era um ciddão muito querido na cidade, educado, solidário, um cara arretado. Como coletor ganhava um bom salário, mas... a família gastava muito, demais e, resultado, o coletor vivia endividado para fazer face aos gastos excessivos da família. Sempre tomava dinheiro emprestado e pagava normalmente. Mas isso o deixava meio triste e sempre preocupado. Pois bem, certa feita a família foi além do limite e além do que era praxe, exorbitou, assi foi preciso tomar um empréstimo maior, e o cara foi ao banco, o gerente era seu amigo, foi numa quinta feira. Ocorre que para a quantia era preciso o aval da matriz e o dinheiro só sairia, com certeza, na segunda feira. Que fez o coletor que precisava do dinheiro urgente os credores o estavam assediando, resolveu, pasmem, no auge do desespero, retirar do cofre da coletoria a quantia que reporia imediatamente na segunda-feira. Deu azar. Na sexa-feira pela manhã chegou na coletoria uma inspeção federal que detectou o que chamarm desfalque. O coletor se sentu desmoralizado, acabado, sabia que além do escândalo seria punido e não poderia mais olhar nos olhos dos amigos. Botou o paletó e foi para casa.

Lembro perfeitamente daquela sexta-feira fatídica, a gente estava almoçando, era o dia da galinha à cabidela, meu pai adorava, tinha aberto uma garrfa de vinho Imperial (lembram-se desse vinho?), depois de uma farfada na comida pegou no copo e quando ia tomando um gole do vinho entrou na sala correndo a empregada da casa, Nair (nunca esqueci dela) gritando: - Seu Ilson, seu amigo o coletor se suicidou-se (falou assim mesmo), deu um tiro nele mermo. Pai, saiu às pressas quase correndo. Fui atrás, curioso e triste porque gostava do coletor. A casa estava cheia, o médico que morava na frente da casa do coletor disse a pai que o cara ainda estava vivo por um milagre, a bala atravessara a cabeça,mas talvez não aguentasse chegar a Caruaru ou Recife. Havia muito sangue na cama. Pegaram um carro e levaram o coletor imediatamente para Recife, meu ai foi com o médico e um enfermeiro. A estrada naquele tempo não era asfaltada, mas conseguiram chegar no Recife com o sujeito vivo. Ele escapou. Curado, foi demitido do serviço público e passou alguns meses na Casa de Detenção. Recomeçou a vida, pagou tudo que devia, mas nunca mais botou os pés em Arvoverde. Praticou um ano de fraqueza, mas era um homem de vergonha.

É dele que me lembro quando vejo esses corruptos assumidos de paletó e gravata com ar importante, alguns até debochando, fazendo delações e saindo do caso ilesos e, inclusive, com muit grana roubada. Vergonha como teve Getúlio e o coletor amigo de meu pai nao há mais. Acabou. Deleteram o sentimento de vergonha. Inté.

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 01/06/2017
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