GRUDYNSKA
(Da  série: Meus  tipos inesquecíveis)

"O celeiro,relegado ao abandono,guardando ainda o odor da erva mate, fugidio,entre uma fresta e outra."



30 de maio/2010,domingo.Cinzento, frio e varrido de um vento lúgubre que vai espatifando-se à cada investida contra a minha janela.
Uma vez mais,Charles Aznavour (en)canta em "Que ces´t triste Venize".Aprisionei-lhe numa (pasmem!!!) fita cassete.Sim,sou ainda meio jurássico, e apesar de não dominar a língua francesa a beleza harmoniosa dos arranjos e a voz endeusada de Aznavour fazem-me bem ao espírito.
Reviro as páginas de um caderno por onde, com as respectivas datas, vou anotando trechos de livros e artigos interessantes que costumo ler.No dia 24/09/2003 ,lia na página 138 de "Solo de Clarineta", um dos livros de memórias de Érico Veríssimo, a seguinte frase:
"Quanto mais velho fico, mais pessoas de meu passado tenho desejo de encontrar para abraça-las e dizer-lhes sem mais explicações: Obrigado!Obrigado!Obrigado!"
Vêm-me à lembrança...

A manhã distante de um domingo muito diferente dêste que agora vivo.Os olhos de Grudynska, amiudados de tôdas as hortências do planeta, azulando-se num sorriso tão polacamente anilado capaz de provocar inveja à céus de novembro.As mãos, por onde sulcos de rugas denunciavam seus quase noventa anos, liberando
amarras da porteira e a gente naquele carro, igualmente azul, singrando a campina atapetada e crespa diante do bangalô quase sem pintura.
Nitidamente retorna-me aos ouvidos a amabilidade daquela voz num tom decidido cortando os ares.
[Aportuguesado seria algo como "Dindóbre Páine!"]
Bom dia!...Sejam bem vindos!...A doçura de sua saudação polonesa.
Abraços selando o encontro da nossa familia com a boa velhinh de avental e lençinho branco à cabeça.
[A "bapka" como a chamávamos]
Meus pés pisam ainda as sempre vivas do pequeno trecho até a sua moradia e ladram em pensamentos aquêles cães alardeando presença de visitantes na "Colonia do Paredão",ou "Parredón",como ela pronunciava.
O assoalho de tábuas largas brilhando na clara manhã de domingo,o vermelho da cêra "Canário",bezuntada por Grudynska na faxina de sábado.No fogão de lenha,temperos e receitas trazidas de terras distantes ,incensando ares,varando janelinhas de madeira ao lado da chaminé. Gatos enovelados em touceiras de capim limão,estimulando apetites aos odores de panelas.
Na saleta,também incensada, tapetinhos feitos à mão desenhando pequenos trevos pelo chão vermelho e da parede os rostos de "Yentcha","Marucha","Yujo" e tantos outros,esboçando seus melhores sorrisos,presos aos limites emoldurados dos retratos.Alguns dêles vivendo aínda na Polônia de onde eventualmente algumas cartas faziam a alegria da idosa.
_Neta de "Yentcha" é medica " no Varsóvia" ,orgulhava-se a anciã.
Sob o caquiseiro quase centenário,a mesa improvisada encoberta por toalha xadrês,e a fenda cavada na terra,ardendo em braseiro,derretendo rebarbas gordurosas do costelão,aos cuidados de Jango,meu pai.
Olhar atento ao assado e ouvidos aguçados ao rádio transmitindo direto de uma cidade proxima,a missa de domingo no rito ucraniano bisantino.Compenetrado,o churrasqueiro,era todo meditação sob a ramagem do caquiseiro.Na cozinha,a harmonia de vozes do coral ucraniano sufocava-se aos animados falatórios da Polaca e visitantes.Aos poucos iam-se chegando:"Marucha","Petrucho","Yujo" e quem mais viesse.
E na colonia eslava, o domingo fluia ungido na ternura e alegria do encontro.A solidariedade selada ao redor daquela mesa sombreada de arbustos,na paz duma visão abençoada onde plantações ofereciam-se em vários matizes de verde camuflados entre capões de araucárias.O celeiro,relegado ao abandono,guardando ainda o odor da erva mate,fugidio entre uma fresta e outra .O olhar de hortências da anfitriã,atento e participativo ao desenrolar de todos os assuntos.
Depois...A tarde caíndo na "Colonia do Paredão" e um longo trecho aguardando pelo nosso retorno.
Grudynska,lenço branco à cabeça, era personificação da paz! Feito imã , atraindo elos da corrente familiar.Bandeira branca da amizade e boa convivência.Novamente a porteira abrindo-se pelas mãos que sempre entenderam de terra.O automóvel azul percorrendo o túnel de afetos! Agradinhos da colonia no porta malas,mãos acenando e olhares amigos esbanjando afetos pelos dois lados do caminho.
Energia refeita na troca de calor humano e o retorno acontecendo entre os gorjeios da tarde enfileirada aos milharais de novembro.
Grudynska foi surpreendida entre as páginas de seu livro de vida.Um ponto final calou sua história numa noite gelada do inverno do Sul. O último percursso,depois de cruzar a porteira,deu-se entre lençóis dourados de feno sêco,feito o louro dos cabelos da sua gente.O céu azulou-se por inteiro , mas aqueles olhos hortenciados não mais travaram o contraste.Adormecidos para sempre,fecharam-se como seu diário de vida.Êste, escrito com as tintas da alma, aquelas que resistem ao tempo.
...E êste vento a espatifar-se contra a minha janela, as lembranças de Grudynska, com seus quase 90 anos fazendo-me refletir uma vez mais sobre as palavras de Érico:
"Quanto mais velho fico, mais pessoas de meu passado...."
Joel Gomes Teixeira 



Clic no link  abaixo para  ouvir uma linda canção polonesa.Destas  que evocam a lembrança de "Grudynska"
https://www.youtube.com/watch?v=o39o2ao-5eA&feature=share

Texto reeditado
Preservados  os comentários ao texto anterior:

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06/08/2010 21:46 - CLAUDIONOR PINHEIRO
Linda, linda ...depois desta homenagem, eu me calo... Saudações itabiranas Claudionor


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05/07/2010 23:02 - Maria Dilma Ponte de Brito
Os seus escrito são ricos de detalhes tal qual as obras de Fernando Verissimo repito mais uma vez. Coincidentemente nesta crônica vc cita Solo de Clarinete da autoria dele. Parabéns pelo bom gosto de leitura e pelo lindo texto.


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25/06/2010 15:06 - RobertoRego
Joel, uma pérola sua crônica. E a personagem central, Grudynska? Fantástica, simplesmente. Andei viajando pelo sul e sua gente, mais o cenário das araucárias, me fascina, poeta.Parabéns, boa tarde, abraço forte, caro poeta.


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22/06/2010 00:34 - tania orsi vargas
Fico a pensar se é você que teve tantas vivências pra contar tantas histórias com detalhes interessantes ou sou eu que não tenho esta tua percepção fina e sensível para tornar literatura das melhores e captar de forma tão especial os personagens e acontecimentos que povoam a nossa existência. Fico com a segunda hipótese, rss... O artista recria o mundo com sua visão singular e o mostra a todos nós para que possamos nos deslumbrar e sonhar. Abraços.


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04/06/2010 16:42 - josé cláudio Cacá
Além de maravilhar-me com a narrativa eu tenho que concordar emocionado com esse seu desfelho que é um fecho de ouro: eu também , quanto mais velho fico mais pessoas do meu passado desejo abraçar e dizer obrigado. Muito bom, amigo! Abraço grande. Paz e bem.


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04/06/2010 12:53 - Malgaxe
Cada volta dessa ao passado voce poderia escrever um livro, porque devem ser tantas as voltas que tu faz e tantas as que tem vontade de fazer, que viverias muito e ainda assim, não escreverias tudo. Abraço


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04/06/2010 10:06 - Rosso
Lembranças da Grudynska em seus quase 90 anos. Imagens tão bonitas que nem sei o que dizer...


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03/06/2010 15:05 - Flor da Vida
Amigo, sou assim de poucas palavras, mas posso lhe afirmar que li, senti, absorvi, e viajei através desse seu sublime conto... Magnífico!!! Deixo a ti um carinhoso abraço... Paz e luz


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03/06/2010 10:02 - geraldinho do engenho
É meu amigo não sei se vou aplaudi-lo pela poesia ,narrativa,ou pela carorona transportando-me para um senário que acabo de de conhecer e me parece tão familiar ccomo se nele eu fora criado.Vc é um grande poeta e merece todo aplauso. tuas cronicas são repletas das mais belas paisagens,com senas ao vivo cujos personagens seus leitores podem pintar verddeiros retratos falados...Resta-me apenas dizer obrigado senhor pelo amigo que me destes!Um abraço e muita paz pra ti e todos aqueles que lhe são caros!


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03/06/2010 00:26 - CONCEIÇÃO GOMES
Seu tunel dos afetos está lindo! E a frase de Érico esua crônica, tocaram o meu coração, hoje tão desejoso de só ficar debaixo de um cobertor, tammanha é a vontade do vento e do frio, entrarem pela minha janela.E como eu gostaria de eencontrar as Grudynskas do meu passado.Abraços na alma.


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02/06/2010 22:48 - Giustina
Emocionante, Joel! Uma verdadeira homenagem a essa polonesa que fez parte de uma época de tua vida. Boas lembranças que amenizam o rigor do dia a dia. Grande abraço.


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02/06/2010 19:24 - Grace Fares
Devaneios...mil. è uma delícialer-te, viajo em cada linha escrita aqui. tenha uma linda noite!


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31/05/2010 23:38 - Isabel Werlang
Li hoje e chorei... como chorei ontem ... domingo frio... solidão e nostalgia... lembranças e saudades indefinidas... Desejo de encontrar pessoas do meu passado também... Um grande abraço conterrâneo


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31/05/2010 16:53 - Anita D Cambuim
Joel, termino de ler a sua crônica com olhos úmidos. Com que ternura você impregna as suas crônicas! Obrigada.


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31/05/2010 00:20 - Lisyt
Joel, Você me emociona! Através de seus textos visualizo sua terra, seus conterrâneos, suas lembranças. Sinto que toda beleza da vida está em saber contemplar cada momento. Assim como Você. Abraços e uma ótima semana.


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30/05/2010 23:53 - Maria Olimpia Alves de Melo
Joel, perfeita. Belíssima. Preciso dezer mais?


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30/05/2010 22:41 - Denise Mello
Que coisa mais linda este texto! Estou sem palavras. Digo, apenas, que gostei demais.


30/05/2010 21:58 -
Muito boa a sua crônica. "Vi" o lugar e a personagem durante a leitura. E lembrei-me de outros personagens muito parecidos que conheci. Parabéns.


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30/05/2010 20:04 - Lilian Reinhardt
Poeta da minha terra impossível grafar a beleza e a imensidão lírica e poética desse seu texto, tamanha a gradiosidade estética e ética que se reveste em seu conteúdo e forma. Reviver sensações, penso eu, é redimensionar a vida, reinventa-la, através da arte, da criação genuína. Quão precioso é esse registro sobre Grudysnska, seus olhos azuis, seus noventa anos, seu chão de táboas largas encerado com cera "canário", tudo pulsa nessas metáforas vivas dos costumes dos nossos poloneses, ucrainos, com os quais convivemos e aprendemos, à canção do instante de hoje que o poeta rememora,com a música de Aznavour, a assertiva de Veríssimo... tudo em precioso momento literário de humanismo e poesia a qual só temos que agradecer-lhe. Cumprimentos! Abraço imenso!


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30/05/2010 18:27 -
Que maravilha! Que texto sensacional Iratiense. De um lirísmo sem limites. Não conhecia essa passagem do Érico. É tudo o que mais quero. Vou tentar comprar o livro. Comer o churrasco de costela, debaixo do caquizeiro, deve ser demais de bom! Seu talento é admirável. Parabéns! Abraços