ENQUANTO ESTOU AQUI
A doença chega sem pedir licença ou credenciais. Não escolhe classe, raça, escolaridade ou se teve uma vida balanceada: amor, desafios intelectuais, mente afiada ou viveu cercado de amor, família sólida.
Nada a detém.
De repente os sinais silenciosos dão o ar de sua graça. Deixam-se perceber e aí os estragos já são grandes . Foi assim com minha amiga Zuleide. Mulher carismática, inteligente, culta, parecia que seus sonhos eram grandes, mas voava alto com os pés no chão. Família linda. Três filhos bem apessoados. Reproduziam a junção dos genes e com certeza, acreditavam que o mundo seria pouco para voos e novas aventuras.
Mas a notícia chegou. O mundo daquela família ficou de ponta cabeça. Como pode algo assim acontecer com quem tinha tudo para alçar voos altíssimos? É a vida tem dessas coisas. Tratamento? Cura? Há como reverter, retardar o avanço da morte e colapso dos neurônios? A medicina não tem resposta. Nem os médicos – equipe multidisciplinar não pode oferecer respostas, apenas um acompanhamento. Estudos estão em andamento, mas ninguém sabe quando surgirão resultados satisfatórios para os milhares de vítimas do ‘apagão’.
O jeito é seguir um dia por vez. Cercado de amor da família, amigos, e viver cada momento como se fosse o último gole de água num deserto de memorias que se vão. Apagão geralmente tem um tempo para voltar, mas para quem recebeu o diagnóstico do mal de Alzheimer ele nunca passa, tornando-se cada vez mais longo.
Famílias precisam se unir, buscar informações, ajudando-se mutuamente. Assim, a travessia parece menos árdua. Zuleide está partindo pra um local que já não consigo espiar. 43 aninhos. Mal de Alzheimer precoce e nos meus pesadelos só consigo ver seus filhos. Desejavam e planejavam ter seus pais velhinhos, curtinho os netos. Os planos já não se encaixam.
- Quem é você? Não a conheço. Mas quem é você mesmo? Silêncio total, olhar vazio, nenhuma expressão de sentimentos. Abraços frouxos, cognição em farrapos, a fala embolada, mente embotada. Um vulto perdido que já não socializa, não consegue expressar sua dor, sua angustia- se as sente. Sei lá! É um pássaro ferido que deixou de receber a seiva da vida.
Sinto muito amiga. Não consegui dizer adeus. Mas expresso amor mesmo que não entendas.
Ione Sak 29/05/17