'GOTAS' DO MAR MINEIRO DE J.G. ROSA-PARTE IV

NARRATIVA DE JGR - Em abril de 1964 surgiu SAGARANA, coletânea de narrativas, expressão da prosa regionalista que se tornou ímpar na Literatura Brasileira. J. G. Rosa, autor ‘homo ludens’, descompromissado com as estruturas do pensamento lógico. Renasce o contador de estórias (em “As mil e uma noites” era a função de Sherazede). FRAGMENTO DE TEXTO-CONTO --- BURRINHO PEDRÊS - “Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.” // TRADIÇÃO - Nesse início, ainda a palavra ingênua e espontânea da “palavra lúdica”, anônima e coletiva. Mas, ao contrário do individualismo dos contadores do Nordeste, na denúncia de uma realidade injusta e dramática que precisava ser contada a todos, ROSA assume o ato de contar como um gesto coletivo de fraternal comunicação a espantosa/natural aventura humana das Gerais e principalmente desvendar o pacto mágico que existe entre homem e sertão - mundo natural e livre ainda da ação disciplinadora da civilização. Não denunciar desventuras, mas permitir que todos participem da experiência vital narrada. // Fórmula linguística caracterizadora da narrativa elementar - “Era (uma vez) um........” / dimensão antropomórfica do personagem central - o burrinho situa a narrativa entre o real e o mágico / esfera intemporal do universo da ficção: tempo e modo verbais sem caráter de coisa datada / precisão e imprecisão documental no registro do espaço: “...ou não sei onde no sertão” / funcionalidade das cantigas inseridas no fluxo narrativo. // PALAVRA-INVENÇÃO - E nessa ordem de ideias regionalistas, a substituição de palavras-depoimento, entra aqui o ‘homo sapiens’, a conscientização da palavra-narrativa, apreendida num sentido global como realidade própria, altamente valiosa. Estilo roseano, em primeiro passo, estrutura de encaixe, isto é, interpolação de estórias na narrativa-base , por exemplo “O burrinho pedrês” com fragmento da estória do “Zebu Calundu”, contada pelo Raimundão no decorrer da viagem dos vaqueiros. // Valorização da palavra pelo autor - em todos os relatos de SAGARANA a palavra é o desencadeador do conflito ou ação principal. // No conto do burrinho, a heróica viagem em que se viu metido, decidida por orem expressa do seu Major: “Arreia este burro também, Franclim!” / Em “Traços biográficos de Lalmo Salathiel ou A volta do marido pródigo”, a palavra elemento-chave define a personagem-central, Lalino, mulato fagueiro, sonhador entre arguto e malandro, fala fácil, mentiroso e de imaginação mais bem aceita que a verdade dos outros. / Em “Sarapalha”, dois primos, presos da maleita, há anos à espera da morte numa cabana em ruínas, num povoado há muito inexistente, Argemiro conta a Ribeiro (cuja mulher fugira há anos com um vaqueiro) que também fora um apaixonado dela, embora sempre respeitador - confissão foi mais importante que o amor frustrado, sempre no anseio silencioso, Ribeiro o expulsa da cabana. / Em “Duelo”, a intriga decorre da mútua perseguição de morte em que se empenham dois homens, a palavra se torna o elemento desencadeante da ação final e decisiva: o assassinato de Turíbio Todo, assassínio consumado não por desafeto ou vingança pessoal, mas por uma palavra dada, a do inofensivo “caguinxo Timpim Vinte-e-Um ao moribundo Cassiano Nunes que havia sido baleado por Turíbio a quem aquele roubara a mulher. // Portanto, valorização rosiana da palavra-narrativa (poética) em significação profunda. ATO LÚDICO --- GRANDE SERTÃO: VEREDAS - essencialidade criadora da palavra-narrativa claramente registrada; efabulação a partir de realidades aparentemente superficiais entre o banal, o épico, o enigmático e o lúdico. // 1956 - surto experimentalista surgiu declaradamente na poesia e na ficção marcado neste romance, mais insólita obra que SAGARANA, recebida pela crítica e pelos leitores com reações entre o deslumbramento, a rejeição medrosa pelo desconhecido e a obscuridade da obra inaugural. // Prolongadas a estrutura e a linguagem do tradicional “romance de 30”, veio outra temática plena de vocabulário novo, numa visão estável, entre pacífica e dramática, escoando fabulações e conflitos psicológicos de heróis individualistas, gênero e forma não facilmente classificáveis, entre ficção ou poesia... romance, novela ou epopeia... saga ou narrativa profética? Amostragem de novos caminhos da ficção - a técnica de trabalho identifica-se com criação. // ESTILO DIALOGANTE - A abertura do “eu” para o “nós” é iniciada pela ficção contemporânea, processo do ‘monólogo interior’ (personagem fechado no círculo de sua própria experiência, em sondagens introspectivas) amplia-se no estilo dialogante ou interrogativo, ou seja, um “eu” se dirige a um “tu” (que permanece fora da narrativa, contando sua vida passada - espaço de reflexão e liberdade criadora. “Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram da briga de homem não. (...) Deus esteja. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando (...) O diabo existe ou não existe? Dou o dito.” // PALAVRA-INVENÇÃO - espraia-se lenta e intrincada, imbricando-se com a palavra-ação e os fatos funcionam ao nível da memória e da palavra do personagem RIOBALDO, revelando o episódio que estruturou caoticamente a intriga literária e as veredas abertas em direção à problemática essencial do livro de JGR: a investigação da condição humana na grande aventura da vida. // PALAVRA-AÇÃO identifica-se no plano narrativo com o gesto, risco de assumir a responsabilidade de um ato, típico exemplo no julgamento de Zé Bedelo, quando os presentes decidem pela sua vida e Riobaldo usa da palavra para defender o chefe dos jagunços e de quem ele não sabia se era amigo ou inimigo, tomando o risco do ato e sugerindo que o acusado abandonasse aquelas terras para que a guerra entre eles terminasse. “ - Bem. Se eu consentir em ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai? (...) - É, pois. A palavra e vou, Chefe...” Eis a significação profunda do “contar estórias” e a essencialidade da ficção roseana que é redescobrir o poder criativo da palavra lúdica, da palavra-invenção e da palavra-ação. FONTE> “A arte narrativa e o espírito lúdico de João Guimarães Rosa”, de Nelly Novaes Coelho - SP, Suplemento literário do jornal O ESTADO SE SÃO PAULO, 14/4/74.

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