O que eu calço?
26/5/2017
Domingo era sempre um dia terrível. Estar em casa durante todo o dia, assim como seus irmãos, sua mãe e seu pai. Na verdade, o pai e os irmão homens passavam a maior parte do tempo da manhã e tarde indo e vindo. Ser adolescente não era fácil pra Marcela, que tinha dúvidas demais, solidão demais, medos demais.
Aquele parecia o momento certo. Ela observou e viu que seu pai saíra, então era o momento certo de banhar-se. Marcela adorava tomar banho, pois além de ficar sozinha, tinha a água quente sobre si, caindo calmamente, incessantemente, sob aquele som agradável da resistência e da água juntos. Era um momento que ela adorava, simples, puro, com cheiro de sabonete, xampu, condicionador e da água.
Geralmente ela se despia rapidamente e entrava no box, abria o chuveiro tremendo e esperava até a água aquecer para entrar. O primeiro contato com a água fazia seu corpo todo se arrepiar. Então ela deslizava suavemente sentindo o calor e a água passar por toda a pele ainda seca até molhar todo o seu corpo e ele se acostumar com a água sempre excessivamente quente.
Em geral nesse momento lembrava do pai. Um medo subia pela sua coluna e a fazia se encolher e pensar sobre o que valia mais a pena, aproveitar o banho ao máximo, e com isso o pai xingando pela porta do banheiro e acusando a de fazer a conta de luz subir, de ser irresponsável e não pensar no quanto ele trabalhava para sustentar a família, as ameaças de arranca lá de dentro do banheiro no meio do banho.
Aí ia se esquecendo de tudo e não decidia nada. Acabava fazendo de forma inconsciente e ficava um bom tempo desfruta do da água quente, da solidão que era raramente agradável, ela pensava bastante, mas nunca eram coisas que faziam toda a diferença. Ela sonhava mais que realizava. Ela creditava esse fato a sua condição de adolescente. O fato de sonhar e o fato de não realizar.
Apesar de parecer que ela saia do mundo, seus ouvidos eram aguçadíssimos e ela vigiava os arredores do banheiro, mesmo sem nunca ter noção do tempo. Em geral a mãe era a primeira a chamar atenção para o tempo do banho:
- Marcela, vai logo nesse chuveiro!
Hum, era hora de se ensaboar. Ela gostava muito da espuma, aproveitava e fazia bastante. Esfregava o corpo com a bucha ensaboada e fazia mais espuma e espalhava pelo box, pelo corpo e observava aquela espuma murchar, com suas bolhazinhas estourando.
No segundo chamado era hora de lavar o cabelo com xampu. Ela fazia tudo com cuidado, pois seus cabelos eram encaracolados, volumosos, longos até as ancas, finos, ressecados e embaraçados. Não queria piorar, pois ela teria que desembaraçar com o condicionador.
Naquele domingo fatídico, logo que o xampu começou a espumar o pai abriu o portão. Ela sentiu um regelar subir pelo seu corpo e respirou fundo. Continuou o processo calmamente. Ouviu a porta de entrada abrir e fechar e os passos se direcionaram ao corredor onde ficava o banheiro, e logo as inconfundíveis batidas do pai à porta:
- Vamos logo aí, ou te arranco do chuveiro antes de terminar.
Ela começava a sentir uma raiva imensa, a segurava e respirava fundo, e respondia:
- Já estou saindo.
Mas não era verdade, pois acabava de começar a lavar com xampu, e ainda tinha o condicionador. E ela sabia que logo viria outra batia e nova ameaça. Então acelerou o quanto pode o xampu, para tentar aguentar as duas novas batidas ou mais até terminar de desembaraçar o cabelo.
Ela enxaguou e aplicou o condicionador em abundancia e com os dedos começou a desembaraçar das pontas, com os cabelos para a frente, enquanto a água caia em suas costas. Não sentia mais prazer e sim uma espécie de pânico.
Outra batida:
- Você está me desafiando?
- Não, já estou saindo.
- Não me tire do sério, menina! – O pai aumentou a ameaça. Isso não era bom. Ele poderia estar bêbado.
Ela fazia o trabalho de desembaraçar tão ansiosa que sentia quebrar alguns fios, e para tentar ser mais rápida começou a puxar mais tufos por vez, o que causava maiores problemas, visto que doía e criava novos nós onde já estava desembaraçado, e isso a deixava em maior pênico e ela começava a chorar, com as lágrimas descendo pelo rosto, entrando pela boca, indo pelas bochechas, se misturando ao creme que estavam a pele, misturando-se com a água quente.
Ela até chegou a pensar que conseguiria, mas quando o chegou na nuca, a pior parte do processo, não houve aviso, a porta foi aberta com força e bateu na parede. Marcela não podia trancar a porta do banheiro.
OS gritos foram quase ao pé do ouvido, o homem vociferava e Macela ficou semiconsciente, não entendia o que ele falava, não foi agredida fisicamente, nem mesmo ele abriu o box, ela o fez, pegou a toalha, desligou o chuveiro e se enrolou na toalha, saiu do box e foi escoltada por uma chuva de injurias paternas sobre a sua falta de respeito em usar o chuveiro por tanto tempo, de queimar o dinheiro que ele ganhava, em ignorar as ordens dele e ela entrou em seu próprio quarto e trancou a porta, lá fora ele continuou, ela chorava e voltava a sim do Pânico que sofre, seu coração estava tão acelerado que lhe faltava sangue no cérebro, ela achou que ia desmaiar e deitou-se na cama, molhando tudo, cobertores e lençóis, e aos poucos a respiração foi voltando ao normal, a tremedeira foi passando, a vista foi voltando ao normal, e então ela levantou e se olhou no espelho.
Seus cabelos longos eram assim pois seu pai não lhe deixava cortar, uma garota de treze anos não tinha dinheiro para pagar um cabeleireiro e as pontas não eram certas, passava anos sem cortar até as pontas, pois não havia cuidado da parte dos pais para com isso, apenas a regulamentação do fato de que ela não devia ter cabelos curtos NUCA. Seu pai não gostava.
Ela ligou o rádio, passava uma música antiga, ela gostava daquela rádio com músicas antigas. Era Raul Seixas dizendo que calçava 37. Ela aumentou bastante o volume para tentar afundar seus pensamentos em um lugar longe da realidade, mas na verdade só conseguiu que seu pai viesse vociferar à porta dizendo que ela estava louca de colocar aquela música, e outras coisas. Ela aumentou mais.
Sentou diante do espelho e pensou: tudo isso porque não consigo desembaraçar o cabelo de outro jeito. Pegou a escova e tentou desaninhas os nós da nuca, até que começou a arrancar os fios, aos tufos, a dor era tanta que ela não sabia como resolver aquilo. O pense ficou preso no tufo, provavelmente ela não estava fazendo aquilo direito.
Marcela pegou a tesoura da escola e começou pela frente, cortando o cabelo, em quantidades diferentes a cada pegada, pois não estava medindo, os fios separados do couro se espalhavam pelo chão. Ela conseguiu tirar todo o grosso e se deitou na cama. Dormiu.
Tempos depois seu pai descreveria a situação como sendo uma frescura rebelde de garotinha, que ela tinha cabelos lindos, e agora nunca mais deixava passar do ombro, fora todo aquele tempo que passou raspando com a gilete dele escondida. Ela ficou careca por meses. Um absurdo, nem mesmo parecia ser a sua filha.