Pertinho de mim
Pertinho de mim
Depois de alguns anos que sob certo ponto pareceram meses, lendo as novas escolas de pensamento, começo a sentir os rudimentos do que significa a multidimensionalidade não para outrem, para mim apenas. Há um lado meu que dia ou outro se exercita no plano cidadão, compartilhando informações e preocupações, se não sofrimentos, no que concerne a nossa pátria. Outro lado quer fugir disso como o diabo da cruz, exausto da podridão diária, da pobreza dos assuntos em pauta, da idiotice das ações em desdobramento. Um degrau conquistado, inda que conquista seja talvez definição incerta, vivo mesmo na sensação de entrar e sair de salas sortidas vezes sem conta, parte delas como observador parcial e assim passível de dor ante os espetáculos oferecidos, e noutros momentos realizo alegrias quietas com uma criatura lá no fundo deveras agradecida por estar viva. Tudo isso varia muito. A mão do passado traz culpa e saudade. A do futuro, receio, vocábulo mendaz para um medo que saltita. Barulhos me incomodam, meu cansaço me incomoda mais ainda, aspirações, sei que as tive, aos borbotões, e, de um ano para cá, uma simplicidade inexplicável no que tange a esse aspecto reivindica somente do meio que me cerca um dia de sol tépido, árvores folhudas, céu amplo, conversas despretensiosas, um bom prato de comida, lençóis limpos, filmes inteligentes, livros, sim, amo-os, andam distantes, artigo que nada me incomoda, impossível ter lençóis limpos todos os dias a menos que residisse num hotel, choveu demais neste maio cujo traço na minha cabeça é azul, sempre foi, e o próprio ato de escrever, ultimamente, está nalgum cômodo que ou bem não me atrevo a abrir a porta, ou bem penso deixe que fique lá, cada um com sua vida, deve estar com sarampo, ou de férias decerto, ou cultivando nozes. Fragmentos vem e voltam.
O grande amor que sinto me machuca quando exige. O ritmo circadiano volta e meia me prega peças, o que supunha ontem estica-se em fronteira diáfana, ano passado um amigo foi para o céu, um irmão que a vida me presenteou para atravessá-la na fatia proposta, a sala do amigo era bordada pela humildade lúcida que não poupava autocrítica, ninguém ali subia num caixote para bater no peito proclamando-se sabedor, conhecedor e possuidor de mares e continentes. Nossas conversas nos tornavam seres humanos entre os seres humanos. Faltou-me um ombro, nessa época, para lamentar sua ausência. Sim, a vida segue, e de todas as perguntas, disparates, boatos, alarmes, conhecimentos, informações, não raro me sinto um receptáculo infindável de informações, leva o troféu esta que coloco a seguir, desconheço a autoria, mas situa o meu lugar, seja lá qual for o meu lugar: Você honra o aspecto individualizado que a Fonte escolheu para experimentar por seu intermédio? Tenho pensado nisso durante minhas iterações, julgo-as aquarelas vívidas em múltiplas opções que aliás saíram das instâncias lógicas no ano presente. Agora, essas palavrinhas pomposas, na sala do meu amigo, sabe como ficariam? Cara, to há mais de meio século correndo atrás do próprio rabo. Impressão minha, talvez seja, aos 57 anos enxergo com uma nitidez espantosa a noção de que isto aqui é uma passagem, nalguns instantes percebo o turbilhão de pontilhados agregados da infância até agora, e, eis um detalhe interessante que ainda não domino, algo que ocorre num átimo, como o flash de uma câmera fotográfica antiga, quando sinto que qualquer gesto, pensamento ou palavra mostra isenção total de mesquinharia, então sim, fico pertinho de mim.
(Imagem: Girl praying with a rose garland, Hubert Salentin)
Pertinho de mim
Depois de alguns anos que sob certo ponto pareceram meses, lendo as novas escolas de pensamento, começo a sentir os rudimentos do que significa a multidimensionalidade não para outrem, para mim apenas. Há um lado meu que dia ou outro se exercita no plano cidadão, compartilhando informações e preocupações, se não sofrimentos, no que concerne a nossa pátria. Outro lado quer fugir disso como o diabo da cruz, exausto da podridão diária, da pobreza dos assuntos em pauta, da idiotice das ações em desdobramento. Um degrau conquistado, inda que conquista seja talvez definição incerta, vivo mesmo na sensação de entrar e sair de salas sortidas vezes sem conta, parte delas como observador parcial e assim passível de dor ante os espetáculos oferecidos, e noutros momentos realizo alegrias quietas com uma criatura lá no fundo deveras agradecida por estar viva. Tudo isso varia muito. A mão do passado traz culpa e saudade. A do futuro, receio, vocábulo mendaz para um medo que saltita. Barulhos me incomodam, meu cansaço me incomoda mais ainda, aspirações, sei que as tive, aos borbotões, e, de um ano para cá, uma simplicidade inexplicável no que tange a esse aspecto reivindica somente do meio que me cerca um dia de sol tépido, árvores folhudas, céu amplo, conversas despretensiosas, um bom prato de comida, lençóis limpos, filmes inteligentes, livros, sim, amo-os, andam distantes, artigo que nada me incomoda, impossível ter lençóis limpos todos os dias a menos que residisse num hotel, choveu demais neste maio cujo traço na minha cabeça é azul, sempre foi, e o próprio ato de escrever, ultimamente, está nalgum cômodo que ou bem não me atrevo a abrir a porta, ou bem penso deixe que fique lá, cada um com sua vida, deve estar com sarampo, ou de férias decerto, ou cultivando nozes. Fragmentos vem e voltam.
O grande amor que sinto me machuca quando exige. O ritmo circadiano volta e meia me prega peças, o que supunha ontem estica-se em fronteira diáfana, ano passado um amigo foi para o céu, um irmão que a vida me presenteou para atravessá-la na fatia proposta, a sala do amigo era bordada pela humildade lúcida que não poupava autocrítica, ninguém ali subia num caixote para bater no peito proclamando-se sabedor, conhecedor e possuidor de mares e continentes. Nossas conversas nos tornavam seres humanos entre os seres humanos. Faltou-me um ombro, nessa época, para lamentar sua ausência. Sim, a vida segue, e de todas as perguntas, disparates, boatos, alarmes, conhecimentos, informações, não raro me sinto um receptáculo infindável de informações, leva o troféu esta que coloco a seguir, desconheço a autoria, mas situa o meu lugar, seja lá qual for o meu lugar: Você honra o aspecto individualizado que a Fonte escolheu para experimentar por seu intermédio? Tenho pensado nisso durante minhas iterações, julgo-as aquarelas vívidas em múltiplas opções que aliás saíram das instâncias lógicas no ano presente. Agora, essas palavrinhas pomposas, na sala do meu amigo, sabe como ficariam? Cara, to há mais de meio século correndo atrás do próprio rabo. Impressão minha, talvez seja, aos 57 anos enxergo com uma nitidez espantosa a noção de que isto aqui é uma passagem, nalguns instantes percebo o turbilhão de pontilhados agregados da infância até agora, e, eis um detalhe interessante que ainda não domino, algo que ocorre num átimo, como o flash de uma câmera fotográfica antiga, quando sinto que qualquer gesto, pensamento ou palavra mostra isenção total de mesquinharia, então sim, fico pertinho de mim.
(Imagem: Girl praying with a rose garland, Hubert Salentin)