CHEIROS INESQUECÍVEIS



Um comício importante (assim afirmaram-me) aconteceria no povoado em que morávamos.
Muito vaidoso,tio Elias preparava-se para o evento.Com autorização de meus pais, levaria-me em sua companhia.
De frente ao espelho ele apertava o nó da gravata, virava-se de costas e ajeitava o paletó cinza escuro.
Tomava entre as mãos um líquido cor de âmbar,inodoro,e com ele massageava os cabelos muito pretos.
_Isso chama-se “Quina Petróleo”! Disse-me apontando para o frasco que lembrava um vidro de xarope .A moça estampada no rótulo tinha um olhar lânguido (dos anos 20,Aqueles!...)
Com o pente ia delineando uma cascata de ondas sobre a cabeça.
Calado e atento pensava eu com meus botões:Quando crescer quero ter cabelos semelhantes aos de meu tio .
Como que adivinhando-me os pensamentos, ele voltou-se pra mim dizendo:
_Um dia você vai crescer e poderá usar estes produtos nos cabelos.Por enquanto,é muito cedo para se fazer algum retoque nesta franja escorrida. Sorriu carinhosamente e partiu para uma tentativa de melhorar o meu visual.
Uma gravata borboleta surgiu de um armário quase enforcando-me sob a gola da camisa branca.O paletó de cor escura fazia com perfeição o estilo “o defunto era maior”,e as ombreiras davam-me um tórax avantajado e ombros largos fazendo-me sentir-se adulto.
Penteia daqui,penteia dali,brilhantina em abundância e a franja escorrida acabou transformando-se num coque besuntado e cheiroso.
Um espelho surgiu às minhas costas para que mirasse-me por inteiro .Lembro ter me achado “o máximo!”.
Estávamos quase prontos para sair quando titio falou-me:Falta um último detalhe:Uma água de cheiro que é “pra provocar o encantamento das moças”.Apanhou um frasco sextavado,com tampa de vidro lapidado.Seus dedos tatearam-me atrás das orelhas com gotículas dum perfume inesquecível.
_”Narcisse Noir” – legítimo! – assim o disse. É o cheiro mais delicioso do mundo! Fechou o frasco recolocando-o cuidadosamente na prateleira.Ao passarmos pela cozinha,apresentou-me aos demais com as palavras:
_Vejam a mudança!...Este caboclinho vai longe rsrs...
A noite era morna e a lua nova desenhava uma cedilha delicada num céu escuro.O rastro do meu primeiro perfume delimitava territórios pelo caminho.
Contrariando a previsão de titio,o caboclinho não conseguiu ir tão longe quanto o esperado,apesar de todo o meu esforço nesse sentido.
Nas idas e vindas pelas estradas do tempo,todas as lembranças que marcaram com traços de ternura minha modesta existência sempre me acompanharam.Sem saudosismos ou queixumes do tipo “antes era diferente,eu era feliz e não sabia...”,absolutamente,faço do hoje a melhor etapa de minha vida mas retomo momentos felizes já vividos para engrandecer ainda mais o meu presente.
Tarde de domingo,quase noite.Em minha caminhada vou articulando ideias para a semana que se apresenta.
Cruzo em frente a uma casa antiga.(casas antigas têm sempre um cinamomo no jardim)
A noite,tal como aquela, é morna e nem percebo se o céu de breu é cedilhado de lua nova.Entrego-me ao cheiro nostálgico dos cinamomos na delicadeza lilás de suas pequenas flores.As notas que espalham-se pelo ar remetem-me àquela noite em que tio Elias e eu,delimitamos territórios com o “cheiro mais delicioso do mundo”,cujo objetivo era "provocar o encantamento das moças".
Lembro das palavras dele ao atravessarmos a cozinha de sua casa:"Esse caboclinho vai longe!"
Incorporado do caboclinho que deveria ter ido longe ,avanço em passos largos.Passos que,apesar de tudo, ainda perseguem esperanças e vestígios de alguns sonhos.
Joel Gomes Teixeira

Texto  reeditado.
Preservados  os comentários ao  texto anterior:




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27/05/2013 19:58 - CONCEIÇÃO GOMES
Lembro-me do Quina Petróleo e da Brilhantina. Imagino voce todo enfatiotado se o máximo! Saudosas lembranças nas letras fantásticas de sua verve de cronista.


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27/05/2013 03:26 - Mgtcs
Excelente texto meu caro, muitíssimo bem construído! Parabéns!


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26/05/2013 09:38 -
Amigo Joel.O tempo passa mais as coisas boas ficam indelevelmente gravadas em nossas mentes.Você me fez lembrar, a Quina petróleo, o Royal Briar,a brilhantina, a Água de Rosas que ainda resiste ao tempo.As quermesses na Igrejinha do bairro,onde colocávamos a melhor roupa para agradar as mocinhas de nossa época.Parabéns pelo belo texto e pelas belas lembranças.


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25/05/2013 22:43 - Lilian Reinhardt
Dá para sentir o olor poeta da beleza de sua prosa, do talentoso escritor que voce é. Cadê o livro?! A nossa alma precisa sempre lê-lo para alimentar-se e a nossa Literatura precisa resguardar a preciosidade de sua palavra. Parabéns! Feliz final de semana! Grande abraço!