Dois tiros, duas vidas.
Eu me lembro exatamente que era um dia de feriado. Eu esperava meu pai ansiosa, pq queria ir no clube. Eu sabia que era dia dele chegar, mas tinha alguma coisa errada. Minha mãe tava tensa, ansiosa, como que se esperasse uma má notícia. Então, eis que ela veio: gritando, alvoraçada.. nervosa. Nunca vi minha avó descontrolada daquele jeito. Eu me chateei porque não iríamos mais no clube aquele dia. Estava tarde. Mal sabia eu que ele não voltaria. Não voltaria mesmo.. naquela tarde de feriado em que eu, na minha inocência, queria ir no clube.
Dois tiros. Impressionante como dois tiros apenas, matam a vida de muita gente. Foi assim com ele e foi assim comigo também. Éramos muito amigos. Éramos mais que amigos - éramos cúmplices. Nós e nossa loucura pelas artes, pelo corpo, pela expressividade. Nós e nossos gênios idênticos, nossa boca marcante.. nosso sorriso enorme. Agora, nós e dois tiros.. e silêncios.
Cheguei a imaginar que fosse o irmão gêmeo dele. Espera.. ele não tem irmão gêmeo. Era filho adotivo, negro e fazia o qoe lhe dava na venta. Espera. Ele era a pessoa mais incrível que se pode conhecer numa vida inteira - porque ele era a vida. A minha vida inteira... ceifada ali.. com dois tiros. E eu tinha apenas oito anos. Oito anos... nem vividos direito... porque não se sabe ainda o que será quando se tem oito anos.
Engraçado tudo: velório, flores, pessoas que eu nunca vi na vida me cercando e me desejando pêsames. E queria eu lá desejo de pêsames?!? Queria, ardentemente, que meu pai se levantasse já daquele caixão (que nem lhe caía bem) e dissesse pra todo mundo: Olha só.. foi tudo uma grande farsa! Uma mentira...! Uma peça que eu preguei na minha mãe e nos meus filhos. Queria que ele fizesse uma reserva no hotel da minha avó dizendo que era da direção de palco do Roberto Carlos.. ( ele pregava essa numa prima nossa, atendente do hotel, sempre que chegava de uma viagem), mas ele não chegou. OU melhor, chegou.. com dois tiros e um peito a menos... e uma vida em frangalhos.
Foi patético e fúnebre. Tocaram saxofone... uma banda inteira, porque ele queria ser enterrado com música. Minha cabeça rodou milhões de vezes até que eu levantei do meu túmulo na sala de espera. Levantei.. e mexi em tudo. Um buraco na cabeça, outro no peito. E eu pensava, com a minha cabeça de filha, em onde morariam agora todos os sonhos e planos e idéias daquele homem. Onde moraria a sua arte? A sua escultura, as suas manias...? Onde moraria seu medo e a sua coragem de me fazer dormir quando eu tinha medo? Onde, Deus? E se Deus existe, por que levou meu pai?!?!?!
Blasfêmias. Crianças se revoltam... e eu tinha plena certeza de que ali morriam meu pai, minha mãe e junto de mim o Deus em quem eu acreditava. Custei a recolorir as imagens, já fatigadas, na minha retina pouco gasta. Custei a pensar em Deus com mais candura e fervor... eu precisava dele pra amansar meus pensamentos torpes. Precisava.. muito.
Engraçado tudo. Flores nos pés. Meu pai gostava de flores? Gostava de diamantes. Gostava de mim. Verbos no passado. Todos os verbos, de todas as conjugações, de todos os modos.. no passado. No passado mais pequeno que alguém pode ter numa memória inteira - ceifada com dois tiros e guardada num caixão de morte. Era.... Achei que ele me sorriu, mas foi só por um instante. Estava constatado - por mim, com toda a minha carteza de criança grande. Ele morreu mesmo. Da minha mãe, um abraço gelado e perdido. Meu irmão... olhos fugazes de quem nem sabe o que é a vida, quanto mais a morte. E de mim? Nem lágrimas. Meu pai morto, agora num caixão fechado. Minha vó descontrolada, como eu nunca vi, também morta, agora. Todos os que restaram: zumbis por muito tempo.
O sete de setembro mais irônico da minha vida. O clube, que não veio. O carro que veio, com meu pai dentro, vazio por dentro. Nada mais a contestar. Lágrimas, escondidas. Dois tiros, duas vidas. Hoje, só um pedaço de menina....