'GOTAS' DO MAR MINEIRO DE J.G. ROSA...-PARTE III
4---RECADO DO MORRO
Estória comum. Destinatário da mensagem é o herói PEDRO ORÓSIO, namorador-conquistador; atrai inveja e ciúme dos companheiros que combinam matá-lo para acabar com as conquistas amorosas a suas namoradas-noivas-esposas. Guia de uma expedição com três patrões: seu ALQUISTE, frei SINFRÃO e seu JUJUCA DO AÇUDE. Há ainda IVO CRÔNICO, companheiro também da expedição, chefe do complô, talvez quem se junte ao grupo. A mensagem é um recado que alerta sobre a conspiração armada, transmitida através de mensageiros supostos anjos, visionários, pessoas ingênuas ou loucas, débeis mentais, criança, um cantor popular, no geral gente de uma linguagem diferente, fora da norma culta, fortemente arraigada à natureza ou à religião, e que intuem facilmente os mistérios. Ao final, através da música popular, da terra, que penetra no subconsciente, ele descobre a conspiração e consegue safar-se graças a seu físico e força de gigante.
NOMES - Estudo num “corpo” literário dos recursos de motivação fonética-morfológica-semântica, comunicando significados a partir de significantes motivadores. // Segundo STEPHEN ULLMANN, lingüista húngaro, há palavras opacas e palavras transparentes, estas podendo ter 3 tipos de motivação: a-fonética (onomatopéias) - semelhança intrínseca e harmonia entre nome e sentido, em contexto favorável - por exemplo, alternância vocálica em ‘vapt-vupt’, ‘ping-pong’ ou ‘patati-patatá’; há o ruído respiratório ‘snif’; b-morfológica - palavras analisadas nos morfemas componentes - por exemplo, verbo ‘repregar’, prefixo + verbo; c-semântica - semelhança entre dois elementos - por exemplo, ‘perna da cadeira’ (metáfora) ou ‘o fórum e a toga’ (metonímia). // No caso de “campainha azul” é um composto transparente, fácil de se entender, e metáfora baseada na forma da flor. Já a onomatopéia é subjetiva, podendo não ser sentida igualmente por diferentes pessoas. // A transmissão da mensagem fala em traição e morte; é passada inteligível de boca em boca, através de 7, número repleto de simbologias, personagens que em comum não usam a norma, porém recursos intuitivos (repetindo, são visionários etc.), tendo nomes associados às figuras que representam e sua intervenção na transmissão da mensagem.
RELIGIOSIDADE - Por outro lado, há uma expedição formada por 7 cavaleiros que passa por 7 lugares durante 7 dias da semana. Este 7 repetido insistentemente e essa viagem é clara alusão ao Apocalipse (grego, ‘revelação’), isto é, a busca da revelação da mensagem. Cada integrante do grupo tem seus próprios interesses na viagem, mas todos acabam envolvidos no mesmo recado, os 7 cavaleiros com os nomes ligados às personalidades que representam, cada qual tendo algo a ver com o tema central do conto: a transmissão da mensagem. // O “recado” fala de 7 cavaleiros que, sentimento de vingança, juraram unidos o objetivo de matar o Rei, referência clara ao herói.
NOMES DOS PERSONAGENS DO RECADO - Motivações fonética, morfológica e semântica que vão dar origem ao nome de cada um - início com os 7 mensageiros: 1-GORGULHO - motivação morfológica, vem de gorgorejo - motivação fonética, som gutural semelhante ao que emitem os urubus que vivem próximos à gruta que servia de habitação a esse eremita - na verdade, motivação semântica, verdadeiro nome é Malaquias, do hebraico Malakhlah, mensageiro de Javé ou Jeová: Gorgulho, o primeiro emissor da mensagem do Morro da Garça, voz da natureza, voz de Deus, e com este se entende por meios extralingüísticos, porque é meio surdo e tem dificuldade de se expressar linguisticamente. // 2-CATRAZ - motivação morfológica, composição do advérbio ‘cá’ + forma verbal ‘traz’, no dizer de uma das personagens, é o que traz o Nominedômine, ‘aconforme um que cá traz’ - irmão de Gorgulho, também vive numa gruta e é receptor da mensagem de Malaquias, verdadeiro nome Zaquiaz, “só Zaquia”, motivação semântica de Zacarias, do hebraico Sakhariah ou “o de quem Javé se lembrou”. // 3-JOÃOZEZIM - motivação morfológica, combinação de João + forma aferética de José, Zé + sufixo diminutivo -im, resultante da forma apocopada de -zinho, muito comum neste autor - motivação fonética, admite-se que a vogal ‘i’ se adapta admiravelmente à idéia de pequenez para caracterizar a simplicidade, a ingenuidade infantil e simultânea esperteza do pequeno ladino; o menino capta a mensagem à maneira das crianças curiosas e espertas e a transmite em detalhes a Guégue. // 4-GUÉGUE - motivação fonética, onomatopaico, “que outro nome não tinha”, refere-se aos sons mal articulados que ele, bobo da fazenda, produzia; não sabia dar opinião, mas repetia alto as palavras e aprendia como papagaio. // 5-NOMINEDÔMINE - motivação semântica, o batista, figura escatológica do sertão, relação com religião e batismo, pretenso Messias, também cognominado Santos Óleos ou Jubileu; apreende do recado seu significado religioso, o único que para ele interessava, para acrescentá-lo ao arsenal dos termos místicos de sua pregação; passa o recado ao Coletor, que gosta muito de freqüentar igrejas. // 6-COLETOR - motivação semântica, nome ao gosto de coletar números, era louco, “nunca tinha sido coletor, nem aquele nome era válido”, imaginava ser rico e passava o tempo contando suas posses; mania por números grandes que rendessem, tipo 7-8-9, nunca 2-3; repetia os aspectos míticos religiosos transmitidos pelo batista, sobretudo os números 12 e cabalístico 7; com ele, Laudelim apreende a mensagem. // 7-LAUDELIM - motivação semântica no sentido de laudar - motivação morfológica, codificador da mensagem através da música, nome claramente composição do verbo ‘laudar’, tecer louvações - motivação fonética, compor canções com o ‘delim’, ‘defim’, som das cordas do violão; através da música popular, o herói do conto recebe a mensagem e consegue evitar a cilada; a exaltação do sentimento artístico popular manifestada através da música fala diretamente ao coração como a melhor forma semiológica da transmissão do recado.
NOMES DOS 7 CAVALEIROS - 1-PEDRO ORÓSIO - dupla motivação semântica, Pedro, herói do conto, nome carregado de elementos de forte significado, no nome e no sobrenome, Pedro significa pedra, idéia de rusticidade + qualidade de rijeza, remete a São Pedro, príncipe dos apóstolos, que se chamava Simão Bar Jonas e Jesus mudou-lhe o nome por ter sido escolhido chefe da cristandade na terra, “Eu te digo. Tu és pedra e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecendo contra ela. E eu te darei as chaves do céu, e tudo o que ligares sobre a terra será ligado também nos céus; e tudo o que desatares sobre a terra ser=a desatado também nos céus” (Mt. 16:18-19) - Pedro, o guia da Igreja Cristã e também da expedição + Orósio vem de ‘orós’, pedra, sobrenome redundância do próprio nome - motivação semântica, apelido Pé-Boi, clara alusão a pé-de-boi, elemento talhado para o serviço pesado. // 2-ALQUISTE - motivação semântica, nome é alusão aos precursores cientistas e alquimistas. significa observador, grande acuidade de sentidos, principalmente visual e auditivo, procura conhecer e interpretar, representa o saber. // 3-FREI SINFRÃO - motivação semântica, do grego Symphrônion, cognato do verbo grego ‘symphronéo’, “ter pensamento concorde, unânime”, isto é, “o cordato”; frei se preocupa muito em rezar, absolver as pessoas e sempre tornar as situações cordiais, para que reine a paz; representa a Igreja. // 4-IVO CRÔNICO - motivação semântica, Ivo usa o arco para combate, crônico é adjetivo relativo a tempo e também quer dizer persistente, inveterado; ciúme das conquistas de Pedro é persistente, prevendo-se intenção de traição por trás de falsa amizade. // 5-JUJUCA DO AÇUDE - motivação fonética, hipocorístico de José, tratamento carinhoso que assume ainda mais intensidade pela repetição da sílaba inicial - motivação semântica, nome composto e José na origem está ligado à fertilidade, filho de fazendeiro rico, de gado, seu nome é o do pai, apelido refere-se à fazenda do pai - é, pois, filho antes de mais nada, herdeiro das qualidades de bom comerciante, fertiliza e multiplica a fortuna do pai, representando o comércio, o capital. // 6-CATRAZ - já descrito como um dos 7 portadores da mensagem. // 7-GUÉGUE - já descrito.
ESPAÇO - Os 7 cavaleiros passam por 7 lugares, caracterizando o espaço percorrido e em cada lugar acontece algo importante que motiva o semanticamente o nome do lugar: a-a morada do JOVE (alusão a Júpiter, pai dos deuses, onde havia muito espaço e sobrenatural) // b-a da dona Vininha, Fazenda do Bôamor (alusão a Vênus, onde “PEDRO ORÓSIO principiou namoro com uma rapariga de muito quilate”) // c-o sítio de Nhô Hermes (referência a Mercúrio, mensageiro dos deuses, onde acharam notícias do mundo por meio de jornais antigos; além disso, Mercúrio era encarregado de todos os negócios do Olimpo e lá seu Jujuca fechou compra de cinqüenta novilhos) - d-na Nhá Selena (referência à Lua, “onde teve uma festinha”, provavelmente sob os raios do luar e onde o frei disse duas missas e confessou mais de uma dúzia de pessoas com as bênçãos celestiais) - e-no Marciano (Marte, deus da guerra, onde PEDRO quase teve de aceitar malajuizada briga) - f-no Apolinário (“na vertente do Formoso, ali já eram os campos gerais, dentro do sol” - Apolo não era só o deus do sol, mas o próprio sol, Deus profundo e purificador, sempre vitorioso destruidor dos exércitos e também conduzia um carro de ouro, cujo brilho refulgia transformado em raios solares - g-tudo isso remete às características do herói do conto, natural da região das Gerais, e por último o local da traição, dentro da gruta, a Lapa Nova do Maquiné.
Os 7 lugares representam também os dias da semana, de novo o 7 em ‘septimana’, tempo decorrido da viagem, nomes com motivação morfológica-semântica: Jove-Júpiter, sexta-feira; Vivinha-Vênus, quinta; Hermes-Mercúrio, quarta; Selena-Lua, segunda; Marciano-Marte, terça. // A viagem deve ter começado na segunda-feira, terminado na sexta - os nomes em português são os únicos do calendário cristão, pois os de origem grega utilizam os nomes dos deuses.
APOCALIPSE - fala nas “sete Igrejas que estão na Ásia” e ‘igreja’ significa reunião das criaturas que sentem pela mesma faixa de sintonia e nutrem os mesmos pensamentos e ideais - Ivo Crônico, Jovelino, Veneriano, Martinho, Hélio Dias Nemes, João Lualino e Zé Azougue, os 7 com um pensamento, “a alma do Rei é a morte, temos de tomar assento... beijaram as 7 espadas, produziram juramento”. Curtiam ressentimento de ciúmes contra PEDRO, o “Kalòs Kagathós” perfeito do observador seu Aiquiste, o Apolo que conquistava todas as moças - Ivo Crônico manejava o arco como arma, persistente em ódio e ciúme + Jovelino, protegido por Júpiter + Veneriano, voltado para Vênus, alusão a ciúme + Martinho (Marte) + Hélio, ligado a Diez do Castelhano, o que matou ‘diez mouros’ + João Lualino, de Lua, Vênus, em Roma + Zé Azougue, muito vivo e esperto. --- Todos os nomes fazem referência a malícia-beligerância-ciúme - motivação morfológica-semântica.
MOTIVAÇÕES - O conto RECADO DO MORRO é um exemplo eloqüente de escritor interessado pelas palavras, sensível a suas sutilezas e familiarizado com sua história, revitalizando=lhes a motivação, desenvolvendo a origem etimológica e recriando novas palavras a partir de elaborações fonético-morfológico-semânticas: dar transparência às palavras de forma que elas tenham um sentido, não só de significante, mas também de significação. // CONTO tecido a partir de uma página bíblica já carregada de diversos sentidos interpretativos, tendo como ‘leitmotiv’ a própria teoria da comunicação (codificador, veículo decodificador da mensagem), transportando para formas de linguagem espontânea, tais como fala de criança e a linguagem coloquial e popular, sob novas dimensões de expressão, através de motivações morfológicas e semânticas relativas ou onomatopéias de motivação absoluta - não são simples palavras opacas. // PERSONAGENS do texto, sob todo o profundo conhecimento religioso místico ao autor, transcendem o regional e se tornam universais.
FONTE:
“A motivação dos nomes na obra de Guimarães Rosa”, de José Fiker - SP, D.O. Leitura, ano 5, n.54, nov. 1986.
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