Foto de 1964 (da esq.para a dir.: meu avô António; minha mãe com 18 anos;
avó Ana; tio António e primo Aníbal) 

 


"A saudade é o passar e o repassar das memórias antigas."
Machado de Assis




HISTÓRIAS DE VIDA QUE RECEBEMOS DO PASSADO E REPASSAMOS AO FUTURO

Na minha vida não tive tudo que eu gostaria de ter tido, mas reconheço que tive muitos privilégios. Um dos  maiores foi o amor dos meus pais e dos meus av
ós: Ana; Maria Olivia; António e Marcolino.  
Seja na infância ou na vida adulta, as perdas sempre nos causam um abalo emocional. Talvez a chuva que hoje cai seja responsável por parte da melancolia que hoje estou sentindo. Cai a chuva sobre as ruas, sobre os telhados, sobre as praias da cidade e o vento vai arrastando languidamente as folhas sobre as pedras das calçadas. Mas não foi o vento que trouxe do passado a fotografia encontrada horas antes, quando procurava um documento numa gaveta. Fotografias antigas quase sempre são sinônimo de inevitável saudade: abre-se o baú das memórias e ali estão as imagens que há muito julgávamos esquecidas. E as lágrimas brotam, entrecortadas por sorrisos e vozes longínquas que tem o poder de afagar e aquecer o coração.  E como é bom sentir esse calor numa tarde fria e chuvosa de inverno!  
 
Foi a saudade que trouxe a imagem bela e perfeita que horas atrás entrou na casa do meu coração e comigo passou alguns momentos.  Aproximou-se de mim trazendo cerejas vermelhas nas mãos e um sorriso imenso na voz e no olhar. Falo da minha avó materna, Ana, uma das lembranças mais ternas e meigas que guardo do jardim da infância. Curioso que as palavras "materna" e "terna" são tão semelhantes! Ana foi uma mulher dinâmica, trabalhadora, justa, alegre, amorosa sem derramamentos e sempre impôs muito respeito. Mãe e esposa dedicada, minha avó era uma exímia cozinheira, gostava de agradar a todos pela boca e pelo afeto. Sofreu muito, amou muito e foi muito amada. O seu amor era alegre, de riso fácil, com sabor, cor e cheiro de pão acabado de sair do forno, manteiga, marmelada, linguiça, queijo de cabra  e café de cevada
*, tudo feito por suas mãos.
 
Ana casou muito jovem. Menina e esposa, menina e mãe. Numa triste e fatídica noite, a  menina esposa, com vinte e poucos anos e já mãe de três meninos viu seu esposo ser assassinado na festa da pequena e pacata aldeia onde moravam, no norte de Portugal. Festas, brigas antigas, noite e álcool são coisas que não combinam. E, mesmo estando com a filhinha mais nova ao colo, não foi possível evitar que o assassino desferisse vários golpes. No aço da faca, o sangue. No chão de paralelepípedos do largo
*, o corpo inerte. Nos olhos dos filhinhos, o terror. Nos olhos e na voz da esposa menina e mãe, os gritos, a dor, as lágrimas derramadas sobre o corpo do jovem esposo, naquela noite que deveria ser apenas de alegria. Nas ruas da aldeia o silêncio e a tristeza reinaram por vários dias. No coração da jovem viúva e mãe o silêncio e a tristeza reinaram por muitos e longos anos.
 
Sofreu muito a minha avó. E quando penso no quanto ela sofreu e conseguiu superar, mais cresce a minha admiração por ela. Ficou viúva por dez anos, trabalhando diariamente, de sol a sol, para  que nada faltasse aos seus três filhos. Quis o destino, ou a vida, que ela conhecesse aquele que viria a ser o seu segundo esposo, o meu avô António, também viúvo e com duas filhas. Curiosamente, alguns anos mais tarde, uma delas, Maria dos Santos, emigrou para a cidade de São Paulo, no Brasil, onde ainda mora. 
Não ouvi, nem vi. Contaram-me. Histórias que chegaram aos meus ouvidos pela boca da minha mãe, do meu pai, avós, tios e pessoas amigas, na terra onde nasci, a mesma terra que testemunhou essas mesmas histórias. Contaram-me: ela viúva e com três filhos, ele viúvo e com dois filhos. Um casal unido pelas vicissitudes da vida, e juntos atravessaram metade do século XX. Juntos, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, sempre juntos, amigos,  irmãos, esposo e esposa, companheiros, cúmplices. Juntos venceram todas as dificuldades e removeram todas as pedras que a vida teimou em colocar no seu caminho.
 
Desse segundo casamento nasceram cinco filhos, apenas dois sobreviveram. Um deles é a minha mãe. Algumas histórias não vivenciei. Outras vi, ouvi, senti, vivenciei e para sempre estarão guardadas no meu coração. A imagem mais viva que hoje trago dos meus avós maternos é esta: ela, alta, forte, de saia comprida e chancas
* nos pés, caminhando rapidamente no quinteiro* para buscar um cesto de cerejas para me presentear; ele, alto, muito magro, de óculos graduados, bigode, trabalhando a madeira, fazendo lindas mesas, cadeiras, louceiros*, carros de bois e rodas de azenhas, com um cigarro apagado e esquecido no canto da boca. Não posso deixar de recordar as meias de lã de ovelha e os socos* de madeira que ele gostava de usar e a arma de caça com a qual caçava perdizes, coelhos e raposas na serra do Faro*.
 
Quando somos crianças, não temos noção de que os nossos avós não são eternos. E o tempo passa tão rápido que, de repente, quando damos conta, já não estão mais ao nosso lado. Hoje eu não tenho mais uma casa de avós para visitar. Infelizmente, os quatro já se foram. O que não foi e nunca irá embora é a saudade. E é como se eles não tivessem ido, porque a memória do que foi bom e bonito permanece nas histórias de vida que do passado recebemos e (re)passamos ao futuro.
A vida é um sopro e o tempo é leve. Pesados somos nós porque nos sobram lembranças, recordações e saudade.
 
Este texto é uma singela homenagem à minha avó Ana Joaquina Alves, pela grande mulher, esposa, mãe, avó e ser humano que foi. Descanse em paz, avó querida!
 


Glossário: 
Café de cevada:   bebida de aspecto semelhante ao do café, confeccionada com grãos torrados e moídos de cevada; 
Faro:   monte; local elevado;
Largo:   praça;

Louceiro:   armário para louça; guarda-louça;
quinteiro:   pequeno quintal murado ou pátio interior;
chancas:    socas ou chinelo feminino com sola de madeira; 
socos:    tamancos masculinos de madeira.  



 

(Casa que pertenceu aos meus avós maternos, hoje reformada) 


 
Rio, 19/maio/2017
Ana Flor do Lácio



 
Ana Flor do Lácio
Enviado por Ana Flor do Lácio em 20/05/2017
Reeditado em 21/05/2017
Código do texto: T6004521
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