UMA LIÇÃO DE CLARICE...

Enquanto algumas pessoas se acham donas do mundo por ter uma pena na mão e com ela poder escrever o que quer e o que pensa, sem se ater para pequenos detalhes, dentre eles, o de magoar e alancear as pessoas, vem um texto de Clarice Lispector - onde ela expõe sua incapacidade de atingir o entendimento no ato da escrita e me deixa maravilhado com a sua simplicidade.

No livro “A Descoberta do Mundo”, em um de seus trechos, ela dá uma aula ao referir-se ao ato de colocar em substrato o seu pensamento, mostrando que a sua verdadeira incapacidade não é o ato em si de escrever, de expressar seu pensamento, mas sim, o de conceber esse pensamento em um estilo próprio que lhe traga o prazer de poder se orgulhar do que escreveu. O que chama a atenção é o fato dela fazer uma analogia entre a humildade e o orgulho para se chegar próximo ao entendimento e dar vida ao que escreveu.

A humildade que ela se refere é a cristã, onde o ideal poderá ou não ser alcançado; onde essa humildade se estabelece através da consciência de ser plenamente incapaz de atingir seus objetivos literários e de até mesmo, produzir entendimento. Mas, Clarice, era sábia. Ao tecer o comentário ela já trazia nas entrelinhas a reflexão de como se proceder através dos textos: chamou essa mesma humildade cristã, aliou a técnica da escrita, ou seja, o estilo, e mostrou que é possível se chegar próximo ao entendimento juntando os dois e dando sentido ao orgulho de escrever.

Uma lição. Ao dizer que somente se chega próximo ao sentido das coisas se utilizando da humildade aliada à técnica, ela dá uma aula de como devemos proceder na nossa missão de repassar a notícia e não querer fazer do nosso poder de expressão, o cabedal de interesses próprios. É o que vemos muitas vezes no nosso cotidiano. Já vimos famílias inteiras serem execradas publicamente porque a imprensa sem levar em conta o seu papel de imparcialidade às fuzilou com seus artigos, contrariando o princípio básico de bater em todas as portas, procurar todas as fontes (por mais irrelevantes que elas possam parecer), para se obter a melhor versão que se possa ter da verdade.

E Clarice se faz evidente nesse sentido quando coloca o orgulho, não como pecado, mas como algo infantil, comparando-o a gula: “O orgulho não é pecado, pelo menos não grave: orgulho é coisa infantil em que se cai como se cai em gulodice”. E é aí que ela se mostra capaz de estabelecer parâmetro entre a capacidade de procurar escrever aquilo que realmente se faz necessário escrever, aquilo que se escreve apenas para dar preenchimento a espaço onde o importante não é a fonte e sim a repercussão, e o interesse particular de quem escreve subjugando a capacidade interpretativa do leitor, do tempo e da justiça.

E ela vai mais longe. Da mesma forma que se acha orgulhosa por descobrir a melhor forma de escrever e não sentir o menor vestígio de pudor, ela também define essa soberba como sendo o mais grave dos erros. Um atraso.

E é fácil perceber esse tipo de empáfia quando nos deparamos com um texto onde o autor simplesmente nos tira a condição de refletir e criar dentro das entrelinhas, uma co-autoria. Interagir com o autor fazendo do texto uma nova interpretação; analisar o texto e se permitir uma nova concepção de axioma, é se fazer Clarice e deixar claro que a simplicidade de escrever, seu estilo, é, antes de tudo, a procura de passar para quem lê, os espaços em brancos que permitem a agradável surpresa de também se ver permeando o universo literário da autora:

“- Não, não é fácil escrever.
É duro quebrar rochas.
Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.
“- Mas já que se há de escrever,
Que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas.
“- Minha liberdade é escrever.
A palavra é meu domínio sobre o mundo”.
(Clarice Lispector)


 


Obs. Imagem da internet

Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 09/08/2007
Reeditado em 04/12/2011
Código do texto: T600031
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