RECONCILIANDO COM O TATAME
 
Às vezes eu fico pensando, com os meus pensamentos, e num desses dias eu estava envolto por esta meditação pensativa, e voltei ao tempo em dez anos quando eu tinha feito sessenta aniversários, e me despedi das lutas e do tatame. (tatame é a área de treinamento do judô). Fiz a ele, o tatame, aquela referência, mais atenciosa, mais ritualizada... No final do meu último treino, e pensei comigo... Já que a minha intenção era fazer uma menção um pouco filosófica, como uma despedida para que o tatame entendesse o meu pensamento... E o porque do meu desligamento que na minha idade, digamos avançada...Era assim que eu pensava, não permitia a continuidade, pelos riscos físicos, pela fadiga dos treinos. Não sei se o tatame entendeu....Acho que não, pois quando eu ia saindo senti que não era somente eu que pensava, mas o tatame parecia que estava pensativo, com ele mesmo...Bah... Não sei o que é que deu nesse atleta - está treinando bem e desistiu por causa da idade! Acho que ainda vai voltar.
Foram tanto tempo vivido juntos, treinado, ensinando o suave caminho e a sua filosofia aos meus discípulos...Também aprendendo com eles...E agora estou me despedindo, pois com sessenta anos devo ter fatigado dessa convivência e tudo deve ter um tempo... Achei que era o tempo do judô ficar dali para a frente, só em lembranças - saí do tatame com uma missão cumprida como técnico se não ao todo, mas sempre querendo fazer o melhor da minha capacidade...Mas talvez a minha capacidade não foi completa comigo mesmo...Mas fui embora, numa despedida, mas parecia que faltou algo, não soube o que....Mas faltou.
Após dez anos quando atingi os setenta, com uma saúde ainda adequada em função do auxílio que o tatame me deu e que fez grande parte na minha vida, pelas práticas do judô adquiridas, até os sessenta anos, mas não me afastei das práticas esportivas... Nadava, andava de bicicleta e de roller até os 68 anos.
Fiquei novamente envolto com os meus pensamentos e imaginando a possibilidade de reiniciar os meus treinos, não como um técnico, não como competidor...Isso já passou e eu não teria mais o que provar...Apesar de não ter provado tanta coisa, mas tentei fazer o possível, talvez voltando como um aluno saudoso, querendo reacrescentar algo que parecia estar faltando, sentia de uma forma uma falta dos rituais como as saudações, do respeito próprio do judô, das fortes pegadas do judogui e que hoje não estão assim tão fortes, do cair, do levantar, do aperto da faixa, das posturas, do aquecimento, dos treinamentos técnicos... Em fim são muitas coisas para lembrar... Mas não deveria ficar somente nas lembranças...Eu queria era mesmo treinar, mas treinar, mas para mim.
Teriam dois clubes de interesse: A Caju de Canoas e a Gaba de São Leopoldo. Optei pela Gaba pela facilidade geográfica por estar próximo da minha residência e fui lá, meio que curioso olhar os treinos e manifestar sobre a minha talvez ousada intenção de voltar ao tatame aos 70 anos. Fui atendido pelo prof. Batista, um exemplo demonstrado em sua dedicação ao judô aos 80 anos vestindo com orgulho o seu judogui amarrado por uma faixa coral que prontamente me convidou e me incentivou a participar dos treinos - tá bom! - Então eu quero comprar um judogui. Espere um pouco que vou ver o que tenho – e depois de fazer uma busca no seu acervo de “coisas do judô” lá veio o prof. Batista com um judogui seminovo, para que eu experimentasse e parecia que até o judogui estava contemplando a meu favor. Ficou perfeito no meu manequim... Vou ficar com este! – quanto devo professor Batista? Nada, tu és meu convidado completo, com judogui e tudo. Saí da academia Gaba, repleto de gentilezas, coisas que a gente encontra com amigos e também com culturas conquistadas com as artes marciais e em especial o Judô.

Para retribuir as gentilezas recebidas, oferecei para a Academia Gaba uma escultura em cimento e metal interno representando o golpe Kata Guruma
Tive que relembrar do ritual como dobrava o judogui. Apanhei a minha faixa preta, claro esta, eu ainda guardava como muito carinho, pois a faixa que usamos após o ritual de colocação, se torna um acessório símbolo hierárquico das conquistas adquiridas no tatame e que significa a nossa marca e até aonde chegamos.
Fiz uma dobra da vestimenta e como era a primeira do recomeço a fiz mais caprichada, envolvi com a faixa, e olhei para o conjunto, apreciei meio que emocionado e fui buscar uma sacola para colocar o judogui dentro, mas não a encontrava...Espere, é um judogui e antes eu não usava sacola, eu o carregava na mão, como um guerreiro... Devo continuar a fazer isso! Não sou mais um guerreiro, aliás, ou sou. Um guerreiro pela idade, e que vai sim lutar com outros atletas, mas não com intuito de vencê-los, porque agora que passei da idade para competir com os outros, devo competir comigo mesmo, sim é isso... Para vencer alguns inimigos internos...Não sei se eles ainda existem....É mas são com eles...E eles é que se cuidem... porque a minha com luta com eles, vai ser feroz.
Assim, sai de casa com o meu judogui em baixo do braço, percorrendo umas dez quadras até o meu destino de treinamento e de forma bípede para iniciar o meu aquecimento. Vesti o judogui... coloquei a minha joelheira, naquele joelho que ainda está mal comigo... Coloquei a minha faixa preta yon dan ( 4º DAN ). Ao entrar no tatame disse-lhe ao cumprimentá-lo - Estou aqui novamente depois de ficar por 10 anos brigado contigo, mas não foi realmente uma briga, pois eu me sentia velho aos 60 anos, ou pelo menos acreditava nisso, e agora eu quero sentir as quedas, recapitular as técnicas eu quero lutar pela vida, pela saúde, e fazer amigos...Foi o que pensei em dizer, acho até que disse...Pois notei, e senti que o tatame me respondeu, imaginariamente: Seja bem vindo, e você vai notar que não será tarde pela idade em números vividos, mas pela tua idade funcional e se não fosse por ela tu não iria querer se reconciliar comigo... Tu deve ter sentido de que o judô fez bem para ti e vai continuar fazendo. Senti sim e também senti aquela amizade do reencontro. Reiniciei o meu, talvez tardio, ou não, o treinamento com o professor Ferreira que argumentou: Tu pode administrar os teus treinos, e fazê-lo da tua forma, dosando e adaptado a tua condição... Ele quis na realidade era me deixar a vontade e até certo ponto me dizer de uma forma amável que eu seria a pessoa mais velha dos seus treinamentos e que todos deveriam ser cuidados com o meu reinício. Mas eu lhe respondi: professor, eu quero acompanhar as suas aulas dentro da sua técnica de ensinar com a experiência de um aluno, um atleta...é isso.

Às vezes me sentia um idoso...Querendo demonstrar que não era idoso, mas fui desenvolvendo os treinos... No início das primeiras quedas, me doía o braço pela batida contra o tatame...Até parecia que ele, o tatame, estava se divertindo comigo por eu tê-lo deixado por dez anos - doeu-me o joelho que ainda esta de mal comigo, e depois dor nas costas... Claro pois também era uma dor que estava de mal comigo, e mais o ombro, acho que era uma tendinite, sim era, pois e já tinha feito uma ecografia e um tratamento fisioterápico, que não ajudou muito.
Nos primeiros treino saia mancando, com dores que me desestimulavam a continuar...E também senti um sinal que eu deveria continuar... Segui o sinal, e hoje depois quatro anos de treino, duas vezes por semana, me sinto um atleta, dentro da minha idade. As dores e o cansaço foram sumindo, ao ponto de não me atrapalhar, pois assim como eu... Todos os atletas sentem as consequências físicas dos treinos.
O professor Batista usou um argumento que ele põe em pratica: O treino cura estas dores, tem que treinar, tem que treinar. Foi um incentivo marcante e é isso que tenho feito... Não sei até quando, talvez quando a idade me expulsar...Mas continuo treinando. Minha maior descoberta foi de que aos setenta anos a minha condição física foi melhor do que o esperado, cheguei até disputar o Campeonato Brasileiro de Masters aos 71 anos com a disputa de três lutas. Mas foi só para marcar a minha volta. Meus combates vão ser comigo mesmo.
No meu último checape feito com 73 anos...Foram estas as palavras do médico ao examinar meus exames...Está tudo OK... Tu no momento não precisa de médico, o que precisas é manter a sua prática esportiva. Então meus amigos que já treinaram judô e atualmente estão parados, procurem fazer uma reconciliação com o tatame e viva uma vida de idoso mais saudável.

 
Scaramouche
Enviado por Scaramouche em 11/05/2017
Reeditado em 17/11/2020
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