O CURATIVO
Quando chegamos à favela onde morava Severina, ela estava fora de seu barraco, ao ar livre, sentada sobre um banquinho e uma jovem mulher, agachada, limpava a imensa ferida que se formara em sua perna, a ponto de, em algumas áreas, visualizarmos a parte óssea. Com competência, ela limpava todos os cantos da ferida e colocava pomada, espalhando com uma espátula. Preocupada com as moscas, que vinham a todo momento, tinha um grande abano ao lado para enxotá-las. Sabia o quanto seria prejudicial uma delas pousar naquela ferida , já tão difícl de ser tratada.
Severina pertencia ao grupo de idosas carentes que ajudávamos. Na realidade, as assistidas naquele centro comunitário eram quarenta . A maioria acima de setenta anos. Há algum tempo, Severina se ausentara, e sabíamos que tinha uma ferida na perna, porém não imaginávamos que o caso fosse tão grave. Como morava em área conturbada, com tiroteios diários, pedimos a duas assistidas, que eram suas vizinhas, que nos acompanhassem. Era imprescindível a companhia de moradores da área, para que não corréssemos riscos, despertando desconfianças dos chefões da favela . Isso não nos impediria de estar, de repente, em meio a tiroteios. Mas, o que fazer, diante das necessidades de Severina? O que vi ali me impressionou de forma definitiva.
Quanta miséria ! Ratos passeavam sem nenhuma restrição, crianças sujas, desnutridas, e aquele cheiro de imundície, impregnado na atmosfera. Sentia náuseas.
Porém, a moça fazendo o curativo, era algo belo, digno de uma pintura. Observava-a no seu trabalho, e admirava-me com a dignidade dela, que mal tinha um teto para morar mas que diariamente ali estava para se doar. Estava há meses fazendo o curativo, conseguindo material através de doações.
Pensei: por que não registram tais atos para os noticiários? Por que não divulgam o amor em toda sua plenitude, tal como eu presenciava naquele ambiente de extrema pobreza?
Cheguei-me a ela e perguntei se precisava de alguma coisa. Respondeu: - Que Deus me dê muitos anos de vida para que eu continue fazendo o meu trabalho.- E mais não disse.
Deixamos cestas de alimentação, gazes, pomadas e medicações diversas para Severina. As demais companheiras fizeram orações, enquanto eu olhava aquele cenário deprimente e indigno de um ser humano habitar.
A noite vinha, e, certamente, começariam os tiroteios; não poderíamos permanecer por mais tempo.
Pegamos, então, o luxuoso carro que estacionamos em local distante da favela, e, ali, senti ainda mais fortes os contrastes de que é feita essa vida!
Viemos falando sobre Severina, mas meu coração estava cheio daquela moça. A moça do curativo.