'GOTAS' DO MAR MINEIRO DE J.G. ROSA...
Revolução formal introduzida pelo Rosa (amigos falam assim...) na língua literária brasileira, um dos marcos de maior carga inovadora: “realismo libertado” (brasileiro EDUARDO PORTELLA), abertura dentro do círculo fechado dentro do romance regionalista - “des-realizar o real em literatura” (expressão do espanhol ORTEGA Y GASSET).
1---DÃO-LALALÃO (subtítulo “o devente”)
NOVELA - estrutura linear simples (romance é esférico) - um núcleo dramático, um conflito (romance, simultaneidade de situações conflitivas).
TÍTULO - não arbitrária sequência de sílabas, isto é, um segmento fônico ao acaso - pode ser a onomatopeia de um sino badalando ou a cantiga infantil “Dão-lalalão, senhor capitão.......” (Repetição rosiana. Em outra novela do autor, “A estória de Lélio e Lia”, do mesmo livro CORPO DE BAILE, “O amor era isso: um sino e seu badaladal.” e as mesmas sílabas em Dona Lalinha, de “O buriti”. Em GRANDE SERTÃO: VEREDAS, romance-poema-épico, “Aquilo bonito, quando tição aceso estala seu fino em faíscas (...) e a labareda dalala”.) Então, agora, é idéia de amor ou de fogo... ou amor de fogo.
PROTAGONISTA ouvira da mulher Doralda uma pergunta: “Bem, porque tu não me trata igual minha mãe me chamava, de Dola?” “Dadã - ele nunca lembrava.” Doralda - Dola - Dadã, formas que ressoam em Dão-lalalão. Aspecto lúdico da poesia de GUIMARÃES ROSA. Seu estilo remete de um lado a outro, mesmo sem dizer “Leiam tal e tal trabalho meu”... Duplicidade de recursos, o máximo de experimentalismo, muitas possibilidas que o signo verbal oferece. Subtítulo “o devente”? - pelo dicionário, verbo ‘devir’, chegar, acontecer, vira ser, transformar-se. Em todos os seus contos, evidentes visão das coisas e do mundo; na novela “Buriti”, ele afirma que “a toda hora o barro se refaz” e “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. Assim, “o devente” devém, transforma-se, está em processo. Na plurissignificação, considerando o verbo como “dever”, o protagonista com sinais de muito medo ou muita culpa, ele ou chega ou está passando a ser ou deve...
NARRATIVA - Um sertanejo a cavalo, figurando um Centauro pela harmonia e entendimento mútuo homem & animal - à esta imagem visual, a sugestão de uma personagem épica, herói das gestas, dos contos de feitos notáveis, porém na época menor do dia-a-dia: encontro do estilo experimental com a tradição. SOROPITA observado à distância pelo narrador, mas em certos momentos haverá fusão (sem confusão) dos dois. Aproximação e separação ‘autor/personagem’: “(...) abaianado. Desde um dia, sua mulher (...)” - lembrança da mulher como foco narrativo e a partir daí já não é o narrador, é a personagem muito meditativa (comum no autor - evocações de tempos passados, imaginação de tempos futuros), passagens de um plano temporal a outro, assim de repente, narração fica mais tensa, sem nitidez entre narrador e narrado; sendo o narrador, refere-se ao narrado pelo nome, SOROPITA, para recuperar o distanciamento ocorrido.
RELIGIOSIDADE - Momento de paráfrase com “Cântico dos Cânticos”, de SALOMÃO, beleza e corpo biblicamente cantados - “Tu é bela! (..) O vôo /metonímia/ e o arrulho dos olhos. Os cabelos, cabriol /diminutivo neológico/. A como as boiadas fogem no chapadão, nas chapadas. (...) A boca - traço que tem a cor como as flores. Os dentes, brancura dos cordeirinhos.” --- Também analogias com o “Apocalipse”, em “Mesmo uma doença nojenta, essa do mal-de-lázaro, tísica, ferida brava? (...) Sobre se ele, SOROPITA, purgasse uma maldição dessas, Doralda ainda gostava dele? (...) Se então ela se lembrasse das horas de gozo dos dois juntos, não tinha asco? (...) No Ão, no mundo não havia sossego suficiente. Tanto que podia ser servido excelso, mas faltavam os prazeres. O inferno era de repente. O medo surgindo de tudo.” --- Autor assinalara a dupla intertextualidade marcando a agitação e o ritmo do conto-novela.
CARACTERIZAÇÃO DO PERSONAGEM - SOROPITA, caráter complexo (não personagem plana, previsível, agindo sempre da mesma forma) - socialmente em boas condições, proprietário, independente, tem casa e mulher, é respeitado, busca alguma coisa na viagem de rotina. Antiquíssimo o tema da viagem desde na literatura mundial (inclua-se o poema “O homem: as viagens”, de CDA), forma de auto-conhecimento (romarias a pé a Santiago de Compostela) e conhecimento do mundo. Ânsia de SOROPITA é conhecer-se - grande dúvida de ser covarde ou corajoso... Valente porque matou o mais temido bandido da região, mas foi porque teve medo, julgou que ia ser agredido e matou. Roído de dúvidas sobre intenção do outro: agressão ou paz. Depois, constante medo do menor “imprevisto” de ser atacado, tranca-se, carrega várias armas, tem absoluta necessidade de segurança. Claramente no nível do enunciado e implícita ou explícita no discurso do narrador que conta que ao menor ruído ele avisava nervoso ao animal, pelo freio, e buscava a arma na cintura. Ele evoca o diálogo com Doralda e esta lhe recomendara cuidado, por brincadeira ele respondera que não se acautelaria: “Um dia sucuriú me come...” A mulher séria, apenas brincando de olhar sem piscar, “os olhos marrons, molhavam lume os olhos”, a lembrança dos olhos dela associada à calma dos brejos maiores de vereda, onde a cobra mora: em tudo há perigo. Em determinado momento da viagem, pensa em propor a ela irem para um lugar bem longe de todos, onde só o casal viveria. Ele a conhecera numa casa de prostituição e a ama, sempre o ciúme (vida no amor, morte no ciúme) a tirar a tranquilidade. Personagem complexa, alternância de vários estados, ora “sendo” vigiado ora cismoso, entrado em si - como ‘devente’, mutável no espaço e no tempo, na sua vida interior. Ansioso de perfeição, o desejo de calmaria absoluta lhe aguça o medo do imprevisto: não suporta o feio, disforme (ele esteta?), asco de tudo o que é “perturbo”, apalpa com mal-estar a cicatriz do rosto, necessidade de ver o avesso bonito “no direito das coisas mais feias”. Extremo sensualismo, sentidos muito aguçados, vigilância permanente. Sobre a mulher, evoca minúcias de gestos e sons da fala; sertanejo refinado, “Ali dentro, trazia para a mulher o presente que a ele mais prazia: um sabonete cheiroso, sabonete fino cor-de-rosa” - forma, cor, cheiro, consistência.
CONTATO EXTERNO com o povoado, onde vem “comprar, conversar e saber (...)” - ouvir a novela para reproduzi-la para alguém que “floreava e encorpava os capítulos quanto se quisesse, adiante quase cada pessoa saía recontando (...)”. SOROPITA, portador da matéria poética; o poeta FRANQUILIM MEIMEIO recria a invenção - logo, processo da transmissão oral da narrativa, pela tecnologia do rádio; lado de paz e repouso na relação com a terra.
OBRA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA - Na quase totalidade, raros contos urbanos e sertão-sertanejo atingem o universal: paisagem isolada, atividades próprias do sertão, personagens portadores das questões mais transcendentais: exigência da perfeição, Bem e Mal, linguagem poética, sentido da existência, busca de identidade, tensão ser X parecer - limites da memória, mitos, arquétipos. Motivos do autor em contos-novelas-romances, SOROPITA sem fugir à regra, realidade concreta, visível, minuciosamente documentada colocando aos poucos maior complexidade, sem nenhuma quebra da coerência interna do personagem ou das situações - o poder encantatório da palavra: o fazer e o saber, ou melhor, o querer saber fluem no discurso da narrativa. O herói que está sendo, não em definitivo, nem herói nem anti-herói e sim homem em processo, ora um tipo ora outro. --- À idealização do sertão e do sertanejo do Romantismo, ao processo inverso de desmitifação sociológica, JGR acrescenta a visão metafísica, mítica e mística, telúrica e poética desse sertão e do sertanejo.
FONTE:
Um apanhado versátil de recortes de livros didáticos fora de uso, sem identificação --- Guimarães Rosa: signo e sentimento”, livro de Suzi Frankl Sperber - Cap. III, ‘Corpo de baile - 3.Dão-lalalão (fragmento).
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