O OLHAR
A família se retira. Examino melhor o motorneiro de pedra. Alguém aceitou ser o modelo daquela estátua. Um dia o motorneiro não foi pedra. Talvez tenha sido uma fotografia amarelada. Terminou aqui totalmente desconhecido. O percurso inverso é possível. O boneco mantém o silêncio. Chegando perto pode ser gente novamente. Nesse instante pode ser gente. Chego perto. O motorneiro de pedra olha o indefinido e estanca. Volta a observar e o que vê retorna. Ele está dentro de um dilema. Tornou-se um tipo de cadáver atormentado por uma questão que o mantém de olhos abertos. O mundo possui um valor que justificasse a sua saída da pedra? O motorneiro não me responde, mas o instante em que o encarei, a pedra, o micro - segundo, se junta ao momento daquela família que fotografou o bonde. Este último momento se une a luminária da avenida, à buzina de um automóvel, à mulher que puxa as cortinas da sua janela e a ventania que levanta os cabelos daquela adolescente. O meu exame captura também o homem que ajeita a antena e o menino que reclama do gosto da alface enquanto um velho entra em seu apartamento sem usar a chave porque esqueceu a porta aberta.
As imagens se juntam: a buzina do automóvel é acionada quando a mulher abre as janelas. O vento passa. O ancião ajeita a roupa do menino para um outro jogar a alface pela janela. O reflexo da luminária esmaga a lataria dos automóveis. Uma Mulher cospe no pai. Tudo são alfaces no meio das avenidas.
Alguém morre neste instante. O médico dirige-se ao pai e avisa “Seu filho morreu” e o pai questiona: “Morreu! De que forma? O que vocês vão fazer agora? Ele morreu e continua a morrer. Ali sobre a maca.”
Se Deus for algum troço seria isto? A multiplicação do instante. Aqui e ali. O baque do que acontece. O guarda-chuva no fundo da piscina. O agora que envolveu a todos. Nem antes, nem nunca.
Isto é o mais próximo que cheguei da frase: “Livrai-nos de todo o mal, amém!”
TRECHO DO LIVRO "DEUS, A FERIDA E A PERIFERIA"