Circulo vicioso
(...)Hoje será o dia. Sim é hoje. Já chega. Estou cansado e tudo está mudando em minha volta e eu preciso mudar também. Minha saúde pede essa mudança, minha família sonha com essa mudança e eu mesmo ao levantar nas primeiras horas da manhã ouvindo os passarinhos que cantam longe, os cachorros que latem ao fundo, também me dou conta que este é o momento de minha mudança.
A primeira vez que bebi na vida, eu devia ter uns oito ou nove anos. Meu pai estava bebendo e me deu um gole de seu copo de caipira só para me ver de cara feia. Depois, quando estava com 12 ou 13 anos, meu pai já me tratava como um homem e ai eu podia quando quisesse experimentar um trago de pinga ou um copo de cerveja, afinal isso era coisa de homem.
Depois veio a juventude e ai tudo era festa. As mulheres ficavam mais bonitas quando eu estava bêbado. Os amigos ficavam mais divertidos e eu me sentia mais confiante. Era assim que a vida jogava. Eu bebia porque todo mundo bebia e agora pago preço de querer, mas não conseguir parar com a maldita bebida.
As pessoas olham para mim e dizem “quando ele está sóbrio ele é uma rica de uma pessoa, mas quando bebe...” elas acham que não escuto, mas eu escuto. Meus filhos sempre tiveram vergonha de mim, eu até os entendo, mas fazer o que é o jeito que eu sou, prefiro fazer de conta que nunca percebi isso também.
Quando conheci minha mulher ela me achava divertido. Quando casamos e eu saia todas as manhãs para trabalhar e voltava a noite cheirando whisky e cerveja, creio que ela deve ter pensando muitas vezes em me largar, mas não o fez. Logo vieram os filhos e ai ela não teve mais escolha, me suportou por longos anos, até se cansar de vez.
Sempre fui um homem trabalhador e nunca fui uma má pessoa. Sempre dei o que pude para minha família e a bebida que era na minha juventude motivo de diversão e alegria passou a ser a válvula de escape. Nunca agredi minha esposa, nem minhas crianças, nem nada disso, mas eu via o medo nos olhos deles. Quando estava sóbrio prometia para mim mesmo que nunca mais iria beber, mas ai o tempo passava e eu começava de novo.
Quando comecei a errar no trabalho, fui demitido. Passei a viver de bicos e quando me dei conta eu passava mais tempo no bar do que em casa e em algum momento que nem sei explicar quando, meu casamento tinha ido pro brejo e meus filhos só me viam de vez em quando. A vida foi passando e eu já não era mais o mesmo.
Quando acordo pela manhã, meu dia não está completo enquanto não tomo o primeiro gole. Parece que falta algo. Fico às vezes um pouco sentado na esperança de que a sede de álcool passe, mas ela teimosamente não passa, segue martelando na minha cabeça, “você precisa beber, você precisa beber” e então eu bebo.
Em algumas manhãs eu acordo totalmente decidido a parar. Consigo por um instante ver a minha solidão e o quanto eu já deixei de conquistar em minha vida por conta da bebida, mas ao mesmo tempo o meu ser consciente briga com o meu ser inconsciente numa louca luta para ver quem ganha e todas as vezes quem leva a melhor é o meu vício que me convence com a velha mentira de que será só mais um gole.
Houve um tempo em que consegui ficar uns vinte ou trinta dias sem beber. As coisas estavam tudo diferente. Minha família voltou a me ver com outros olhos e a me incluir. Até minha esposa estava sorrindo um pouco mais para mim. Minha esperança voltou a figurar com força. Eu estava conseguindo recuperar-me do vicio.
Num domingo quando sai para ir à casa de minha filha vi os amigos em frente a um bar onde nos encontrávamos em dias de jogo da fluzão, e então eu cheguei para dar um abraço neles e naquele entrevero, papo vai, papo vem, quando me dei conta já estava com o copo na mão e tinha esquecido o almoço. O pior é que eu nem lembro do jogo, apenas sei, hoje, porque vi mais tarde que o Renato fez um gol com a barriga. As pessoas dizem que foi um grande jogo, eu não lembro.
Então hoje eu decidi. Chegou a hora de parar. Preciso dar um novo rumo em minha vida. Não tenho o direito de ser a vergonha da minha família. Estou chegando à idade de me aposentar e já fazem mais de 20 anos que não tenho um trabalho com carteira assinada.
Às vezes quando estou no bar, sentado com os amigos, sorvendo um trago de canha, vejo a minha mulher passar de carro com o novo marido dela. Ele parece que está sendo o marido que eu deveria ter sido, o pai que eu nunca fui e o avô que eu jamais serei. Ele esta vivendo a vida que deveria ser minha e eu nem posso culpa-lo por isso.
Minha saúde não aguenta mais, meu corpo grita por ajuda e eu mais do que nunca tenho consciência que essa não é a vida que quero para a minha velhice. Um dia desses cai na estrada e amanheci dormindo na calçada como um animal. Só tenho ainda uma casa porque meus filhos garantem de pagar a água e a luz, senão, até isso eu teria perdido. Não aguento mais. Minha decisão está tomada(...)
Ele pensou antes de beber o meio copo de cachaça que estava em sua frente sobre o balcão e fazer sinal para o garçom encher mais um copo. “Amanhã. Amanhã eu vou parar...” Ele completou o pensamento, enquanto o garçom enchia mais um copo.