A Batalha Mortal
Outro dia, irritado com moscas que apareceram em meu apartamento, lembrei-me de um evento da minha infância: o chicote mata-moscas. Naquela época eu passava boa parte do tempo “livre” tomando conta do botequim de meu pai. E este, como todo pé-sujo, de vez em quando padecia de infestação de moscas. Não me lembro bem de onde veio a história de que se podia matar moscas com um “chicote”, um pedaço de barbante com um nó na ponta amarrado em uma pequena vara de madeira, mas decidi construir um. Minha primeira surpresa foi ver a altura do estalido que este “chicote” produzia. A segunda foi ver que, depois de alguma prática, eu era capaz de matar moscas em pleno voo. Em pouco tempo eu já era fera, e acabei dando conta de quase todas as moscas de nosso comércio!
De posse desta lembrança decidi reconstruir meu lendário chicote, e aporrinhei tanto minha esposa quanto minha caçula para me ajudarem. Ambas foram absolutamente descrentes da minha possibilidade de sucesso, segurando o riso para não me chatearem. Minha esposa, com a autoridade que tal posição fornece, habilmente tirou o corpo fora. Disse que depois iria me comprar uma daquelas raquetes elétricas mata-moscas que vendem por aí. Minha caçula, com as obrigações que tal posição impõe, me arrumou o material necessário para a construção de meu imponente chicote, e deu o fora para não presenciar meu fracasso.
Com a vaidade atingida pelo ceticismo, mas valido do poder de minhas lembranças, passei à construção de meu poderoso chicote. Foi complicado. Não se acham mais aqueles barbantes de embrulho de pão, tão comuns na minha infância. Precisei me contentar com um desses cordões de segurar calças, o qual minha caçula generosamente tirou de uma das suas. O bastãozinho de madeira (Onde diabos eu arrumei aquilo? Como era mesmo?) foi substituído por uma varinha de alumínio, cuja origem desconheço. Não me dei por vencido. Apesar de dispor apenas de materiais inadequados e rudimentares, passei à construção de minha ferramenta de guerra! Deu trabalho. Passei um bom tempo adaptando amarras e comprimentos (Essa droga de alumínio deixa o barbante deslizar!), mas cheguei ao ponto em que era capaz de, novamente, produzir os poderosos estalidos!
Fui então em busca de minhas inimigas! Novamente foi difícil. Felizmente (?), não havia tantas delas em meu apartamento quanto no boteco da minha infância. Localizei apenas três, uma em meu quarto, duas na sala. Tudo bem! Sabia que bastaria exibir os corpos destruídos destas inimigas para poder mostrar às céticas do que eu era capaz. Talvez elas reagissem mais com nojo do que com reconhecimento, mas eu me sentiria novamente o herói que fui em minha infância.
O campo de batalha se encontrava praticamente deserto. Apenas eu, minhas inimigas e as duas gatas da casa se encontravam presentes. Talvez minha mulher e filha, para não me envergonhar, não quisessem presenciar o que elas julgavam vir a ser um fiasco. Talvez as duas únicas testemunhas da batalha, as gatas, só estivessem ali por achar que construí aquele estranho objeto para brincar com elas (gatas acham um barbante balançando algo irresistível). Não esmoreci! Parti aguerridamente para a luta contra minhas inimigas!
A luta foi árdua! Ao som dos primeiros estalidos houve logo duas baixas de guerra: as gatas saíram correndo! Covardes! Não me deixei abalar. Continuei bravamente na luta. Sabia que me faltava traquejo, mas logo eu recuperaria a técnica e teria sucesso. Após horas de batalha (ou teriam sido minutos) suando em bicas, declarei um empate. Podia não tê-las matado, mas as várias vezes em que elas mudaram de lugar deixou claro o pânico que espalhei no campo inimigo. Talvez, graças a este pânico, elas acabem aceitando um pedido de rendição incondicional. Afinal, eu ainda posso ameaçá-las de voltar com as armas de maior tecnologia que os EUA, digo, minha esposa, ficou de fornecer! Posso recorrer ao poder de persuasão da raquete atômica, quero dizer, elétrica!
Recolhido em meu quarto, após a adrenalina baixar e o senso de ridículo subir, tento entender o que aconteceu. Uma parte de mim quer acreditar que destruí parte das inimigas, só não localizei os corpos (curioso, eu não estou vendo a mosca do meu quarto). Outra parte quer acreditar que a construção do chicote de minha infância seja uma arte perdida, algo como as mal sucedidas reconstruções do 14 bis e da nau de Cabral (o do descobrimento, não o da cela). A maior parte de mim percebe que fiz papel de velho bobo que vai ter que encarar, logo, o olhar benevolente da esposa e da caçula. Fingindo que nada aconteceu elas até esperarão alguns dias antes de me presentearem com aquela raquete…
Refletindo sobre meu sucesso infantil começo a questioná-lo. Talvez o desaparecimento das moscas tenha se devido mais a um fenômeno meteorológico sazonal do que a meu instrumento de guerra. Talvez, quando cumprido o devido tempo para sua volta, eu estivesse ocupado demais com meus livros para dar-lhes a atenção de antes… E os corpos que lembro muito bem de ter encontrado? Talvez tenham morrido de morte natural e eu, infantilmente, associasse aqueles corpos a meu poderoso chicote. Talvez tenham morrido de rir da cena grotesca…
Só me resta fazer o que todo adulto sensato faz numa hora dessas: fingir que nada aconteceu e deixar de lado as lembranças infantis. Seja como for… diabos, a mosca do meu quarto voltou! Onde foi que eu deixei aquele chicote?